Noções de cultura de saúde: as funções do córtex cerebral

Até o advento da tomografia computadorizada nos anos 70, a principal função do neurologista clínico era a “localização” neurológica, ou o diagnóstico “topográfico”. Após uma longa história clínica ele ou ela faziam um minucioso exame físico, que muitas vezes levava pacientes ao riso. Utilizavam-se pedaços de algodão, abaixadores de língua, alfinetes de chapéu do século XIX, diapasão, martelo de reflexos e chaves, para cutucar a barriga, a sola dos pés, joelhos e cotovelos, olhos e garganta, e muitas vezes as regiões perianal e inguinal. Dependia desses exames onde o neurologista recomendava que um neurocirurgião abrisse o crânio ou a coluna para achar um tumor, por exemplo. Com a tomografia e a ressonância magnética, essas habilidades neurológicas perderam parte de sua importância clínica. Com o advento do SPECT e do PET, exames que produzem imagens metabólicas e funcionais do cérebro, a importância científica dos testes clínicos aumentou, pois agora se pode comprovar onde fica cada uma das funções testadas.

Em demonstrações clínicas em auditórios na França e Inglaterra, o neurologista demonstrava sua erudição examinando as funções do córtex dos lobos frontais, temporais, parietais e occipitais, de um lado e depois do outro. O lobo frontal direito controla comportamento e os movimentos do lado esquerdo do corpo. O parietal direito, logo acima da orelha, sente o que se passa do lado esquerdo do corpo. O temporal direito, por dentro da orelha, se ocupa com memória não-verbal, para espaço, figuras, ritmo e a musicalidade. O lobo occipital direito, lá no extremo posterior do crânio, enxerga o lado esquerdo do campo visual. Não a visão do olho esquerdo, como pensa a maioria das pessoas, e sim o lado esquerdo do campo visual de ambos os olhos. Os lobos parietal e occipital esquerdos fazem o mesmo que os direitos, porém com o outro lado. O lobo temporal trata de memória, como o direito, porém memória verbal, lógica e matemática. O lobo frontal esquerdo mexe o lado direito do corpo, e a sua porção anterior regula emoções, comportamento, iniciativa, funções que divide com o lobo frontal direito.

A maior característica do hemisfério cerebral esquerdo é o controle das funções verbais. O entendimento da fala se faz numa região posterior do lobo temporal esquerdo, perto da região cortical de audição, próxima ao lobo parietal. Desta região atrás da orelha o que se entendeu de uma frase vai por um feixe de axônios chamado fascículo arcuado, que faz a forma de um arco por dentro da substância branca do hemisfério cerebral esquerdo. Viaja até a região de expressão da fala, no lobo frontal esquerdo, por dentro da articulação da mandíbula, ao lado da região que movimenta a musculatura da boca, da língua, e da deglutição.

O que mais diferencia o córtex do ser humano daquele dos macacos e cachorros são as áreas de associação. Vale a pena imaginar que quando conversamos, dançamos, fazemos sexo, estamos utilizando várias funções ao mesmo tempo. Audição, sensação, visão, fala, entendimento de palavras, tudo ocorre em conjunto. A função mais nobre do cérebro humano é associar informações e dar a elas um sentido, uma interpretação. Essas áreas de associação ficam nas fronteiras entre os lobos, e principalmente numa região que fica por trás e por cima das orelhas, onde existe uma tripla fronteira, entre os lobos parietal, temporal e occipital.

Todas as regiões corticais que ficam por fora, como as folhas visíveis de uma árvore frondosa, são modernas na evolução, têm 6 camadas de neurônios, existem no ser humano e em alguns primatas mais evoluídos. Outras regiões corticais mais antigas, existentes em animais inferiores, têm 3 ou 4 camadas de neurônios, e ficam escondidas nas reentrâncias corticais. Essas regiões, utilizadas para o olfato em animais como os cães, desenvolveram-se para controlar as reações emocionais no ser humano e nos primatas superiores. É o chamado sistema límbico.

Devido à complexidade da subespecialização dos neurônios corticais, foram se formando centros controladores por baixo do córtex. Se o córtex são as folhas de uma árvore frondosa, é como se colocássemos algumas casas de Tarzan entre os galhos. Os centros controladores são núcleos de neurônios imersos na substância branca na base do cérebro. Informações que vêm do dedão do pé, para chegar ao consciente, precisam chegar ao córtex. O caminho começa no nervo periférico, vai pela raiz medular, entra na coluna, sobe pela medula, passa pelo tronco cerebral, pelos núcleos da base e finalmente vai ao córtex. Nos núcleos da base existe informação antiga para resolver se aquele estímulo pode voltar dali direto como um reflexo, ou se precisa ser enviado ao córtex. E também para dirigir o estímulo ao local, ou aos locais certos, do córtex. Se o que está ocorrendo no dedão esquerdo é uma queimadura, antes mesmo de a informação chegar ao córtex sensitivo no lobo parietal direito, a pessoa já retirou o pé, em um reflexo que pode ser ativado na própria medula espinhal, no tronco cerebral ou nos gânglios da base.

No próximo artigo desta série sobre as bases da neurologia, abordaremos a memória, que, pelo último parágrafo, você já pode adivinhar, é conceitualmente ainda mais complexa.

Paulo R.M. de Bittencourt

é médico em Curitiba. (
www.unineuro.com.br )

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