De acordo com definições de especialistas, dependência química é a necessidade de usar drogas para atingir uma sensação de satisfação ou evitar mal-estar, podendo ser física ou psicológica, considerada como doença. Dados da Organização Mundial de Saúde indicam que o problema atinge 15% das pessoas. Um levantamento feito pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), nas 107 maiores cidades do País, revelou que 41,3% dos habitantes têm algum tipo de relação com entorpecentes. Somente o álcool representa 11,2% desse universo. Na região Sul, estima-se que 9,5% da população tenha dependência química.

Para Dagoberto Hungria Requião, coordenador do Instituto de Prevenção e Atenção às Drogas (Ipad), ligada à Pontifícia Universidade Católica do Paraná, um dado alarmante se refere à quantidade de jovens dependentes. Dos mais de cinco milhões de alcoólatras no Brasil, 387 mil têm entre 12 e 17 anos. “Antigamente, os meninos começavam a beber por volta dos 17 anos, incentivados pelo pensamento de que, a partir daquele momento, eram homens. Hoje em dia, com 17 anos, o jovem já é um doente. Eles estão bebendo cada vez mais cedo”, afirma Requião.

Ele acredita que o motivo para isso é o exemplo dentro de casa, também para o caso das drogas. “Se o pai chega em casa nervoso e relaxa com a bebida e se a mãe está alterada e toma tranqüilizantes, a criança vai achar que, para se sentir feliz ou alegre, é preciso consumir bebidas e remédios. Sem falar naqueles casos que os próprios pais são dependentes”, comenta o coordenador.

Outro motivo apontado por Requião é o costume de fazer a criança experimentar bebida. “Os pais acabam se desautorizando e não conseguem mais colocar limites nos filhos”, avalia. “Normalmente, os pais negam ou passam o problema para outros, como as ditas más companhias”, explica.

Educação

A administradora da Clínica Nova Esperança, de Curitiba, que trata de dependentes químicos, Aracélis Canelada Copedê, acha que uma das razões para o aumento do consumo de drogas na juventude está justamente na educação dada pela família. “Depois das revoluções dos anos 60 e 70, a educação mudou de repressora para muita liberdade. O pai precisa impor autoridade e limites”, acredita. “Atualmente, muitos adolescentes começam a beber e fumar dentro de casa”, indica.

Na clínica onde trabalha, Aracélis já acolheu pacientes com 12 anos de idade. “Aos 28, a pessoa já está muito comprometida pelo álcool e pelas drogas, tornando a recuperação muito difícil”, conta. Um exemplo, ocorrido na semana passada, foi de um homem de 35 anos que estava internado no estabelecimento e que, devido ao alto nível de comprometimento, acabou morrendo. “Nós chamamos a UTI móvel, mas sabíamos que não iria adiantar”, relata.

Exemplos

Uma das internas da Nova Esperança é Andréia (nome fictício), de 19 anos. Ela começou a usar maconha com 14. “No início não gostei, até passei mal, mas insisti na besteira. Depois mudei para a cocaína e me apaixonei pela droga”, conta. Andréia lembra que a família desconfiou da dependência quando ela saiu de casa para cursar faculdade. “Eu gastava muito dinheiro e não voltava para visitar meus pais. A minha mãe colocou um detetive atrás de mim e ele descobriu tudo”.

Ela ficou internada em uma clínica de recuperação por três meses e, ao ter alta, conheceu o crack por causa de um envolvimento amoroso. “Foi mais uma paixão na minha vida. Eu fumava todos os dias. Chegava a trocar minhas roupas por isso”, comenta. A família descobriu novamente e ela está internada na Nova Esperança há duas semanas. “Eu não queria vir e tiveram que me segurar à força para entrar. O mais difícil é aceitar a doença e, hoje, já aceitei que sou um dependente”, afirma Andréia. Após sair da clínica, daqui a vinte dias, ela vai continuar o tratamento e pretende retomar a faculdade de Psicologia.

Desintoxicar, base para recuperar

A desintoxicação é um dos passos fundamentais durante o tratamento de recuperação das drogas. As reações biológicas e fisiológicas, aliadas à confusão de sentimentos dos dependentes, causam alucinações, convulsões e um comportamento agressivo.

“Eles não sabem distinguir o que é raiva, remorso, ódio, mágoa, em função da personalidade e da própria droga. Fazem de pequenas situações grandes tragédias porque não têm estrutura para lidar com isso”, explica Aracélis Copedê, da Clínica Nova Esperança. Os picos de abstinência variam conforme a droga utilizada. No caso do crack e cocaína, por exemplo, os efeitos surgem principalmente a partir do 12.º dia sem a substância.

O paciente que está se desintoxicando utiliza remédios durante os primeiros cinco dias para evitar a síndrome de abstinência, como os anticonvulsivos. “Vamos tirando gradativamente. Depois, o paciente fica sem a medicação. Às vezes, o corpo da pessoa está tão resistente que demora muito para fazer efeito”, explica Aracélis.

Para ela, os sintomas cada vez mais fortes estão baseados na associação do uso de vários tipos de droga simultaneamente. “Quando surgiu o crack e o seu consumo com outras drogas, tive que colocar grades nas janelas, telas e arame farpado para evitar que os pacientes fugissem”, comenta.

A agressividade e as alucinações fazem com que a pessoa agrida a si mesmo, os outros pacientes e a equipe médica, além do risco de destruir o patrimônio da clínica. Para conter situações em que a agressividade apareça, todos no estabelecimento – inclusive os internos – realizam a chamada contenção (chamada por eles de grupo de ajuda), na qual mobilizam a pessoa alterada na maca com faixas de pano e colete pelo período mínimo de duas horas ou até se acalmar. “Não podemos encarar a contenção como punição. Estamos ajudando a pessoa a voltar ao normal, sem prejudicar os outros”, explica Aracélis. Uma vez por semana os pacientes recebem treinamento e aperfeiçoam a técnica da contenção.

A clínica também trabalha com as experiências de todos no grupo para auxiliar na recuperação. Os pacientes têm limites de horários, regras para viver na casa e obrigação de participar de todas as dinâmicas. A família também participa, uma vez por semana, das atividades dos pacientes e recebem orientações de como cuidar do dependente, encarar o problema e ajudar na recuperação durante a internação e após a alta médica.

Vulnerabilidades elevam consumo

As vulnerabilidades psicológica, social e biológica são as principais razões para o consumo de drogas e o surgimento da dependência química. Aqueles que têm mais tolerância e assimilam melhor as substâncias são grandes candidatos à doença. Mas, de acordo com o coordenador do Ipad, Dagoberto Requião, a quantidade ingerida não define um dependente, o que dificulta o diagnóstico. O que muda é a relação da pessoa com as drogas.

“Alguns indicadores são: a dificuldade de trabalhar, o estado de alcoolizado dentro de casa, acidentes de trânsito por causa da bebida, agressividade e a tolerância. O sujeito vai bebendo cada vez mais até se sentir bem. Depois acontece o contrário. Toma pouca bebida, mas age como se tivesse tomado muito”, explica Requião.

Para Aracélis Copedê, administradora da Clínica Nova Esperança, os dependentes se tornam especialistas em arrumar motivos que justifiquem o uso de drogas. “Se beberem sem motivos, eles passam por sem-vergonhas”, comenta.

A maior incidência nos casos de dependência está relacionada com as bebidas alcoólicas. Um dos motivos para isso é o fácil acesso da droga, também estimulada pela sociedade em diversas situações, como no happy hour ou no futebol com os amigos, além das propagandas na mídia.

Família arrasada

O álcool quase acabou com a família do aposentado João (nome fictício), que começou a beber aos 14 anos. Ele tomava cachaça todos os dias até os cinqüenta anos. “Eu tolerava doses homéricas de bebidas destiladas”, conta. A esposa e os filhos sofriam com o estado em que João chegava em casa. “Um amigo de bar teve uma dependência muito violenta e foi internado. Ele conheceu o Alcoólicos Anônimos (A.A.) e parou com o vício”, lembra. “Esse mesmo amigo passou a se preocupar comigo e, no dia do meu aniversário, ele me levou ao A.A.”, revela João.

Depois de 14 meses de luta, superou o alcoolismo. “Foi um dos períodos que mais sofri na vida. O corpo sentia muita falta. Além disso, antes eu passava o dia planejando a minha bebedeira à noite. Quando tentei parar de beber, pensava o que faria depois do trabalho sem a bebida e não encontrava nada”, explica João.

Durante a recuperação, por causa da abstinência, ele ficou revoltado, depressivo e agressivo, chegando a bater nos filhos e na mulher. “A minha família começou a brigar porque antes eu era alegre e estava daquele jeito. A minha mulher me convidou a sair de casa, porque não agüentava mais, mesmo depois de passar 21 anos vendo eu chegar bêbado”. Após oito dias fora, voltou para casa disposto a se recuperar de vez. João está sóbrio há 29 anos e ajuda o A.A. no desenvolvimento e abertura de novos centros.

Vida acabada

Já Luiz (nome fictício), de 52 anos, está internado há 13 dias na Clínica Nova Esperança, lutando contra a bebida. Começou a beber com 23 anos e, em um curto período, já estava acabado por causa do vício. “Eu larguei a faculdade, onde estava me preparando para seguir na carreira de diplomata”, relembra.

A família o colocou para fora de casa e, sem ter condições de sustento, Luiz passou a se instalar em clínicas psiquiátricas (que antigamente tratavam os dependentes), porque o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) cobria 90 dias de internação. Quando terminava o prazo, partia para outro estabelecimento, sem dar notícias, ficando quatro anos tido como desaparecido. Luiz só foi descoberto quando a irmã dele, que também é alco-ólatra, foi internar a outra irmã pelo mesmo problema.

Em uma das recaídas que teve, Luiz parou em uma casa evangélica para se recuperar. Lá conheceu sua esposa, com quem está casado até hoje, e adotou três filhos. Só que não conseguiu vencer a batalha e está na terceira tentativa dentro de uma clínica. Há duas semanas, Luiz quase cometeu o suicídio duas vezes em apenas 36 horas. “Achava que a minha família ficaria melhor sem mim e que estava prejudicando. Tinha medo que meus filhos entrassem nessa vida pelo exemplo dentro de casa”, conta. “Mas esqueci que tenho uma filha que quero levar ao altar, que tenho uma mulher que me ama e que eles precisam de mim e nunca me abandonaram”, explica Luiz. Ele tomou uma atitude radical e colocou na cabeça que precisa se recuperar depois de 28 anos de vício. “Chega disso. Estou aprendendo que preciso me amar para poder amar minha família”, aponta Luiz.

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