Acesso fácil ao jogo cria uma patologia

Se você se considera um jogador eventual, aquele que aposta na loteria quando os prêmios estão acumulados, fique tranquilo. Se você se diverte em uma mesa de pôquer mensalmente com os amigos, não deixe isso se tornar rotina.

Mas, se você joga todos os dias e deixa o jogo interferir na sua vida, procure auxílio médico, este é o sinal de que você está acometido de uma dependência conhecida pelos médicos como síndrome do jogo patológico.

No início é sempre uma brincadeira, uma atividade saudável e de entretenimento, mas, com o passar do tempo, pode transformar-se em um vício incontrolável. O transtorno patológico de jogo é uma dependência psicológica, caracterizada por comportamentos compulsivos de hábitos executados inúmeras vezes. São hábitos aprendidos, seguidos por alguma gratificação emocional, trazendo um alívio de ansiedade ou de angústia no jogador.

O assunto vem ganhando importância crescente, principalmente, pela repercussão no horário nobre em que a Rede Globo está abordando a compulsão pelo jogo na novela “Insensato Coração”.

Na trama, o personagem Kleber, interpretado pelo ator Cássio Gabus Mendes, já perdeu a família e o emprego como jornalista devido ao vício. Com isso, e devido ao fácil acesso a vários tipos de jogos disponíveis no país, dos mais simples, como os de loteria, aos mais perigosos, como corridas de cavalo, cartas e bingos, além dos jogos eletrônicos popularizados pela internet, o tema vem ganhando cada dia mais atenção.

Muitas pessoas se tornam jogadores patológicos devido à facilidade de acesso ao jogo

Impor limites

Segundo a psicanalista Soraya Hissa de Carvalho, tudo começa com pequenas apostas, na maioria dos casos, entre homens. Ela explica que algumas pessoas não controlam o comportamento diante do jogo e, consequentemente, causam descontrole em todos os sentidos da vida.

“Não impondo limites, o jogador pode comprometer a vida social, a renda, o trabalho, os compromissos financeiros e, até mesmo, a ruína de seus familiares”, avalia a especialista.

O ato compulsivo de jogar tem comportamentos e reações idênticas ao abuso do álcool e drogas e do hábito intempestivo do vômito (bulimia e anorexia). São comportamentos que geram transtornos negativos para a vida, com consequências físicas, psicológicas e sociais extremamente graves.

Para o psiquiatra Dagoberto Hungria Requião não é tão fácil assim identificar um jogador patológico. Geralmente, eles são dissimulados, mentem para os amigos e familiares e se desdobram em desculpas para negar que estão jogando.

Muitas vezes os sinais podem ser imperceptíveis. Os mais comuns são a inquietação e a irritabilidade, além das sucessivas faltas ao trabalho e a dilapidação dos bens materiais.

Para o médico, a trajetória do jogador patológico tem um roteiro comum: primeiro, a fase do ganho; depois o início das perdas e o surgimento de um otimismo irracional – “ele sempre acha que na próxima jogada sairá vencedor”; e, o circulo vicioso da perda. “Nessa fase, o indivíduo tem a necessidade de apostar quantias cada vez maiores, para tentar recuperar o que já perdeu”, reconhece o médico.

Diagnóstico delicado

O diagnóstico da patologia, no entender do médico, deve ser preciso e responsável. “A investigação médica deve ser fundamentada por critérios específicos, dentro da literatura disponível”, adverte Requião, salientando que não se pode firmar o diagnóst,ico da doença sem ter a plena certeza dela.

Por se tratar de uma doença crônica, os tratamentos cognitivos devem enfocar tanto a recuperação quanto a prevenção de novas recaídas. Segundo o psiquiatra, as técnicas buscam identificar quais as emoções que o indivíduo sente ao jogar, que sentimentos estão associados a esse ato e, assim, tratá-lo no todo.

“Geralmente, os pacientes procuram ajuda médica somente quando estão no fundo do poço”, constata Requião, destacando que para o sucesso dos tratamentos a participação de amigos e familiares é fundamental.

De acordo com Soraya de Carvalho, já existem no Brasil algumas clínicas de assistência a essas vítimas, conhecidas por associação de apoio aos jogadores compulsivos.

Estudos concluem que não há prevalência da síndrome em determinada faixa etária, mas o diagnóstico de jogadores patológicos pode existir desde a adolescência até a velhice.

A terapeuta destaca que o transtorno pode ser tratado com acompanhamento de psicoterapias, psicodinâmicas, terapia familiar, cognitiva e comportamental, além de uso de antidepressivos.

Pôquer online, uma febre perigosa

O comentarista econômico Wenderson Wanzeller aponta que só existem três verdades sobre o pôquer: jogador de pôquer não é e nunca será uma profissão; o pôquer, nem de longe é um esporte; e o passatempo não passa de um jogo de azar. No Brasil, jogar pôquer apostando dinheiro é contravenção.

O problema é que vários sites incentivam o jogo online, ignorando a legislação. Uma fortuna está sendo investida para conquistar novos adeptos no Brasil. Conforme Wanzeller, tem site para tudo que é gosto e tamanho de bolso. O apelo é muito forte. É quase um aliciamento.

A linha adotada para conquistar novos praticantes é apelativa. Eles massificam a ideia de que os grandes jogadores são profissionais ou desportistas. Nos comerciais para a TV, os praticantes dão depoimentos emocionantes, algo do tipo: eu era pião, trabalhava 12 horas por dia e, depois de virar “jogador profissional”, em apenas três meses, consegui a minha independência financeira.

Jogar pôquer não é profissão. Não existe curso técnico, faculdade nem diploma de jogador. Dizer que um jogador de pôquer é um profissional ofende a qualquer profissão ou órgão de classe. Não existe código brasileiro de ocupação para jogador de pôquer. Também não consta no imposto de renda essa opção como atividade remunerada.

“Estão plantando a semente do mal, os legisladores precisam ficar mais atentos”, adverte o comentarista, indicando que a Polícia Federal acompanhe mais de perto o investimento de milhões de reais por meio dos sites online na mídia brasileira.