Um Mundo “non sense” – e legislações ainda mais…

Pasmei-me, aos 03 de julho de 2003, quando li no Jornal da Tarde (Caderno A, fls. 12) que, nos Estados Unidos da América nortista, um detento que cumpria pena de agressão foi condenado à prisão perpétua devido a uma cusparada que lançou no rosto de um guarda daquela federação. Efetivamente, uma cuspida federal…

Mas a cuspida que me disponho a discutir nessas considerações não é fluídica; ¡é internética!

Estou a falar do spam, uma irresponsável, deselegante e aborrecedora prática que, inegavelmente, deve ser punida, mas não com penalidades despropositadas, como ocorre no projeto de Lei do Senado da Califórnia, votado no final de maio de 2003.

Caso seja aprovado pela Assembléia californiana, os spammers estarão sujeitos ao pagamento de u?a multa de US$ 500.00 (em caso de boa-fé) a até US$ 1,500.00 (se for dolosa a ação do spammer).

Todavia, através de cálculos elementares, constataremos que estamos a falar de cifras inalcançáveis.

Partindo do pressuposto que todo spammer que se preza já enviou, ao menos, um milhão de spams, bem como deve existir, também ao menos, um milhar de spammers (ah se assim o fosse…), chegamos ao astronômico quantum de US$ 500,000,000,000.00, a título de indenizações, em sendo aplicada a Lei californiana. Porém, se a ação for dolosa, as indenizações podem alcançar os US$ 1,500,000,000,000.00. Ora… isso implica na não exeqüibilidade da medida legal.

Todavia essa absurdez quanto à proporcionalidade das penas, que exerce um peculiar fascínio sobre os legisladores da América supra-equatorial, não se restringe àquelas terras. A questão é endêmica.

Entre nós, no ano 2002 o ex-deputado IVAN PAIXÃO apresentou o projeto de Lei nº 6.210/02, que foi objeto de dedicada análise em meu livrinho EMAILS INDESEJADOS À LUZ DO DIREITO (Quartier Latin, 2002). Posteriormente, esse projeto de Lei acabou sendo substituído pelo projeto de Lei nº 7.093/02 que trouxe novos gravames.

Nos teratológicos projetos de Lei, legislava-se sobre matéria já legislada, repetindo exaustivamente propostas já discutidas e tratadas pelos Códigos de Defesa do Consumidor, Civil e a Constituição Federal.

No tocante à multa, o artigo 10º dispunha o seguinte:

ART. 10 AS INFRAÇÕES AOS PRECEITOS DESTA LEI, INDEPENDENTE DAS SANÇÕES DE NATUREZA PENAL E REPARAÇÃO DE DANOS QUE CAUSAREM, SUJEITAM O INFRATOR À PENA DE MULTA DE CEM A DEZ MIL REAIS POR MENSAGEM ENVIADA, ACRESCIDA DE UM TERÇO NA REINCIDÊNCIA.

Em se tomando o exemplo de um milhão de spams e um milhar de spammers, nos moldes do projeto de Lei arquivado as multas variariam de R$ 100.000.000.000,00 a R$ 10.000.000.000.000,00. Sim, é isso mesmo: ¡de cem bilhões a dez trilões de reais!

Agora, sem pirotecnias elétricas, mas com maquiagens jurídicas, tenta-se, através de uá medida da FECOMÉRCIO, revitalizar o morto ? e bem morto ? projeto do ex-deputado IVAN PAIXÃO.

Um grave erro dessa proposta de projeto de Lei é a excessiva penalização ao spammer, impondo-lhe multas equivalentes a dez salários mínimos (cerca de R$ 2.400,00) por spam enviado. Pela derradeira vez tomando o exemplo do milhão de spams e o milhar de spammers, atingiremos o hipotético (mas não descabido) valor de três trilhões de Reais. Convenhamos…

POR VEZES EU VIVO NA TERRA DAS FANTASIAS, MAS SÓ NAQUELES MOMENTOS EM QUE NÃO ME EMPENHO EM REFLEXÕES JURÍDICAS. QUANDO A LEI OU O DIREITO SE TORNAM OBJETO DE MINHAS SINAPSES, ABSTENHO-ME DAS FUGAZES (MAS POR VEZES MAJESTOSAS E PRAZEROSAS) DIVAGAÇÕES PARA DAR VEZ A U?A ANÁLISE CRÍTICA E OBJETIVA. CONTUDO QUANDO CONSTATO QUE PODE SER APLICADA U?A MULTA DE R$ 2.400.000.000,00 (DOIS BILHÕES E QUATROCENTOS MILHÕES DE REAIS) ? A SER REVERTIDA EM FAVOR DE UM “FUNDO DESTINADO A PROGRAMAS DE INCLUSÃO DIGITAL”, NOS TERMOS DO ARTIGO 7º DA PROPOSTA DE PROJETO, CONFESSO QUE SINTO DIFICULDADES EM MANTER U?A ANÁLISE CRÍTICA E OBJETIVA DA QUESTÃO.

COMO É DO CONHECIMENTO DE QUALQUER INTERNAUTA QUE POSSUA UMA CAIXA DE CORREIO ELETRÔNICO, COMUNS E INCONTÁVEIS SÃO OS EMAILS QUE OFERECEM LISTAS DE EMAILS. NORMALMENTE COM MAIS DE UM MILHÃO DE DESTINATÁRIOS, POR PREÇOS IRRISÓRIOS.

CERTAMENTE OS QUE OFERECEM EMAILING LISTS ENVIAM SPAMS PARA TODOS OS CONSTANTES DAS LISTAS QUE VENDEM.

LOGO, EM SENDO OBJETO DE PERÍCIA ESSE COMPUTADOR, POR CERTO SERÁ OBTIDA A PROVA DO ENVIO DE SPAMS A MAIS DE UM MILHÃO DE PESSOAS – ¡E POR PREÇOS IRRISÓRIOS!

NESSE MOMENTO O SPAMMER TERÁ QUE PAGAR R$ 2.400.000.000,00 ? ALÉM DOS DANOS CIVIS… (ARTIGO 6º, § 1º, DA DISCUTIDA PROPOSTA DE PROJETO DE LEI).

Fico curioso por saber como o Ministério Público promoverá a execução da multa a ser aplicada ao spammer ? a não que o spammer seja a EMBRATEL. Nesse caso o spammer deverá possuir uma receita, em 2004, de aproximadamente R$ 3.000.000.000,00.

Como registra a História da Web e a de nossos Ministérios Públicos, sempre me insurgi contra o spam

A princípio minha discussão chegou até mesmo a soar como bisonha; contudo o Tempo me desagravou. Hoje o spamming deixou de ser objeto de críticas de poucos para se tornar algo aterrador que deve ser punido com o mais extremado rigor. Contudo não é bem assim…

Como já o disse, apóio a aplicação da Lei com rigor (¡o que me espanta, é a sua aplicação sem rigor!). Entrementes não estou a discutir uma punição rigorosa, mas, severíssima, despropositada e irreal, implicando uma verdadeira morte civil e comercial para o spammer.

Apoiados nos descabidos mensurares punitivos da Lei do software, os atuais defensores de penas rigorosas para os spammers não se apercebem do tamanho da realidade.

Quando da virada do Século XV para o XVI, ocasião em que a miséria grassava nas terras do império britânico, foi instituída a pena de morte para os crimes de roubo.

Thomas Morus

, na apresentação da Utopia (LIVRO I) se refere a esses fatos e demonstra, cabalmente, que por vezes a majoração da pena em vez de coibir a prática de um crime menor motiva à perpetração de um maior. Na época dos fatos a que aludo, em vez de ser coibido o roubo pelo aumento do gravame penal, sucedeu-se um efeito colateral não previsto: os homicídios aumentaram em estrondosa proporção. E a razão era uma só: eliminar a vítima do roubo era o melhor a ser feito, haja vista que ela seria um potencial delator da ocorrência. Assim acresceram-se degraus na escada da periculosidade em vez de diminuí-los.

NADA DISSO DEVIA SURPREENDER-VOS. NESTE CASO A MORTE É UMA PENA INJUSTA E INÚTIL; BASTANTE CRUEL PARA PUNIR O ROUBO, MAS BASTANTE FRACA PARA IMPEDI-LO. O SIMPLES ROUBO NÃO MERECE A FORCA, E O MAIS HORRÍVEL SUPLÍCIO NÃO IMPEDIRÁ DE ROUBAR O QUE NÃO DISPÕE DE OUTRO MEIO PARA NÃO MORRER DE FOME. NISTO, A JUSTIÇA DE INGLATERRA E DE MUITOS OUTROS PAÍSES SE ASSEMELHA AOS MESTRES QUE ESPANCAM OS ALUNOS EM LUGAR DE INSTRUÍ-LOS. FAZEIS SOFRER AOS LADRÕES PAVOROSOS TORMENTOS; NÃO SERIA MELHOR GARANTIR A EXISTÊNCIA A TODOS OS MEMBROS DA SOCIEDADE, A FIM DE QUE NINGUÉM SE VISSE NA NECESSIDADE DE ROUBAR, PRIMEIRO, E DE MORRER, DEPOIS?

(…)

PODEM OBJETAR-ME, SEM DÚVIDA, QUE A SOCIEDADE, TIRANDO-LHE A VIDA, VINGA A JUSTIÇA E AS LEIS, E NÃO PUNE SOMENTE UMA MISERÁVEL SUBTRAÇÃO DE DINHEIRO. RESPONDEREI COM ESTE AXIOMA: SUMMUM JUS, SUMMA INJURIA, O SUPREMO DIREITO É UMA INJUSTIÇA SUPREMA. A VONTADE DO LEGISLADOR NÃO É TÃO INFALÍVEL E ABSOLUTA QUE SEJA NECESSÁRIO DESEMBAINHAR A ESPADA À MENOR INFRAÇÃO AOS SEUS DECRETOS. A LEI NÃO É TÃO RÍGIDA E ESTÓICA QUE COLOQUE, NO MESMO NÍVEL, TODOS OS DELITOS E CRIMES, E NÃO ESTABELEÇA NENHUMA DIFERENÇA ENTRE MATAR UM HOMEM E ROUBÁ-LO. SE A EQÜIDADE NÃO É UMA PALAVRA CÃ, HÁ ENTRE ESSAS DUAS AÇÕES UM ABISMO.

(…)

TAIS SÃO OS MOTIVOS QUE ME PERSUADEM QUE É INJUSTO APLICAR AO LADRÃO O MESMO CASTIGO QUE AO ASSASSINO. POUCAS PALAVRAS VOS FARÃO COMPREENDER COMO ESTA PENALIDADE É ABSURDA EM SI MESMA E COMO É PERIGOSA À SEGURANÇA PÚBLICA.

O CELERADO VÊ QUE NÃO HÁ MENOS A TEMER FURTANDO DO QUE ASSASSINANDO; ENTÃO, ELE MATA AQUELE A QUEM APENAS DESPOJARA; E MATA-O PARA A SUA PRÓPRIA SEGURANÇA. ASSIM AGINDO, ELE SE DESCARTA DO SEU PRINCIPAL DENUNCIADOR, E TEM MAIOR PROBABILIDADE DE ESCONDER O CRIME. EIS O BELO EFEITO DESTA JUSTIÇA IMPLACÁVEL: ATERRORIZANDO O LADRÃO COM A EXPECTATIVA DA FORCA, FEZ DELE UM ASSASSINO!

Por vezes, na ânsia de punir um determinado crime, o legislador tende a lhe atribuir um apenamento desproporcional e despropositado que mais acaba por motivar a prática de um delito mais sério que tenha o mesmo apenamento. Deste modo, em vez de se punir o delinqüente se pune a sociedade.

O spamming, nos moldes da legislação existente, é de ser punido ? como sempre o propus. Mas propus punição no campo do razoável. Não no campo do muito que nada significa.

Já temos penalidades. Não há que se mercantizar a punição. Civilmente existem bases que garantem, com pragmatismo, o ressarcimento das vítimas dos spammers.

* AMARO MORAES E SILVA NETO é advogado e autor dos livros “Privacidade na Internet, um Enfoque Jurídico” (Edipro, 2001) e “Emails Indesejados à Luz do Direito” (Quartier Latin), além de coletâneas como a organizada por Demócrito Reinaldo Filho (Direito e Internet, questões polêmicas).

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