O desejo de ver o famoso raio verde

Desde a minha juventude, ao ler os romances de Júlio Verne, o desejo de ver o famoso raio verde dominou-me. Por ocasião dos meus estágios no Observatório do Pic-du-Midi, não só no poente como no nascente, tive ocasião de observá-lo diversas vezes, antes e depois do período de minhas observações astronômicas. É algo surpreendente: seja acompanhar o desaparecimento, disco solar, no poente, para observar a luz verde que subitamente aparece quando o Sol se encontra quase completamente submerso na linha do horizonte, ou ao contrário, tentar, no silêncio gélido das madrugadas dos Pirineus, a 2.800 metros de altitude, visualizar o aparecimento do Sol, cuja posição no horizonte já havíamos previamente determinado na noite anterior.

Exercício de paciência e determinação que vale a pena ser tentado. Mesmo na ausência do raio verde, compreendemos o misticismo que acompanha esses dois momentos, ao longo da história da humanidade, em virtude dos diversos matizes cromáticos que se apresentam, como uma tela impressionista a renovar-se a cada dia.

O raio verde é um feixe dominantemente esverdeado que surge quando o limite superior do bordo do disco solar desaparece ou reaparece no horizonte, respectivamente, durante o ocaso ou nascer do Sol. O uso do vocábulo raio, usado na França – le rayon vert – na Alemanha – der grume Strahl – deve-se à idéia que a observação transmite ao leigo de que o fenômeno parece constituir um feixe luminoso emitido pelo Sol naqueles dois exatos momentos. Em virtude do raio verde aparecer como um relâmpago de curta duração, os ingleses preferem empregar a expressão green flash, embora também usem green ray, para designar esse fenômeno.

Todas essas designações partem da idéia de que esse fotometeoro é visto usualmente, durante curta fração de segundo, nas regiões próximas ao equador terrestre, como ocorre no Egito, onde parecem ter surgidos os primeiros relatos deste evento, sempre como uma ocorrência de curta duração. Na realidade, o raio verde pode ser mais longo se observado nas latitudes mais elevadas, próximo aos pólos norte e sul. Recentemente surgiu uma nova designação inglesa, mais compatível com a realidade – green rim (bordo verde)-, usada para definir os fragmentos esverdeados que, às vezes, parecem flutuar sobre os bordos do disco solar, quando do nascimento ou pôr-do-Sol.

A formação do raio verde depende de vários fatores, fazendo com que a sua aparição constituía um fenômeno relativamente raro, ou melhor, de difícil observação. É provocada pela refração, dispersão e observação da luz solar na atmosfera terrestre, cuja estrutura e composição tem também muita importância na sua formação.

Nas regiões equatoriais e tropicais, o fenômeno é visto durante uma fração de segundo e só pode ser apreciado quando o ar está claro e o horizonte distintamente visível, condições mais fáceis de ser encontradas nos mares, nas montanhas e nos desertos.

Ao contrário dos outros fenômenos físicos, o interesse pelo raio verde surgiu de um relato de ficção científica. De fato, foi a publicação do livro Le Rayon Vert do escritor francês Júlio Verne, em 1882, que atraiu a atenção dos homens de ciência, se considerarmos o número de artigos de natureza científica consagrados ao raio verde, após o aparecimento deste romance. Como não se conhece nenhuma publicação anterior sobre o assunto, seria interessante procurar saber o que teria despertado a atenção de Júlio Verne. A bem da verdade, a mais antiga observação de que se tem conhecimento foi relatada pelo físico inglês W. Swan, um ano após a publicação do livro de Verne, na revista inglesa Nature, em 1883, onde está registrada a “deslumbrante visão de um raio verde esmeralda, ao pôr-do-Sol, sobre uma distante montanha em Righi, a 13 de setembro de 1865”.

Outra referência anterior é uma carta enviada à Manchester Literary and Philosophical Society, em 1869, relatando a observação de um raio verde efetuada por Baxendell. Somente extratos desta carta foram introduzidos num artigo que D. Winstanley publicou em Nature, em 1873, na qual se apresenta uma primeira explicação teórica para o fenômeno. Segundo Winstanley, a atmosfera age sobre a luz solar como um prisma de baixa dispersão. O espalhamento cromático causado pela ação prismática proporciona o aparecimento de uma coloração azul-violeta no bordo superior do disco solar. No entanto, como o violeta e o azul se dispersam mais intensamente do que o verde na atmosfera, o bordo superior do Sol apresenta-se esverdeado, pois as outras cores são absorvidas pela atmosfera.

É curioso que a maior parte dos que estudaram o raio verde tenha se referido ao romance de Júlio Verne, sem lembrar que além da descrição do fenômeno o ficcionista francês sugeriu duas hipóteses científicas para explicá-lo. Devemos assinalar que a explicação proposta por Winstanley não aparece na novela, o que faz supor que Verne a desconhecia ou não a aceitou como provável. Entretanto, o que muito impressionou é o fato do pesquisador que mais estudou o assunto, o jesuíta D.J.R. O’Connell, do Observatório do Vaticano, em seu livro The Green Flash and Other Low Sun Phenomena (1958), tenha atribuído as duas hipóteses expostas por Verne a outros autores que publicaram seus trabalhos depois de 1882.

A trama deste romance de Júlio Verne – concentra-se na tentativa de dois tios, Sam e Sib, procurarem convencer a sua sobrinha, Helena Campbell, a esposar um jovem rapaz de grande cultura, Aristobulus Ursiclos. Diante da insistência dos tios, Helena acaba confessando que nunca se casaria: “Nunca, meus tios … ao menos enquanto não tiver visto… o Raio Verde”. A condição exigida pela jovem personagem verniana fundamentava-se numa velha lenda, segundo a qual esse raio tinha o dom de fazer que quem o visse uma vez nunca mais poderia enganar-se em questões de sentimento: sua aparição destruiria ilusões e mentiras. Quem tivesse sido suficientemente feliz em avistá-lo uma só vez, poderia ver claro no seu coração e no dos outros.

P.S. Resumo da conferência pronunciada pelo autor durante as comemorações do Centenário de morte de Júlio Verne, no Centre International Júlio Verne, em Amiens, cidade na qual residia quando faleceu em 24 de março de 1905.

Ronaldo Rogério de Freitas Mourão é, além de pesquisador-titutar do Museu de Astronomia e Ciências Afins, do qual foi fundador e primeiro diretor, autor de mais de 70 livros, dentre outros do Anuário de Astronomia 2005.Consulte a homepage: www.ronaldomourao.com

 

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