O alerta com as gorduras trans

Os ácidos graxos (e.g., capróico do leite caprino e do óleo de coco, C6H12O2) exibem maior poder calorífico (capacidade de geração de energia metabólica) ou seja na faixa de 9 Kcal / grama se comparados com os carboidratos (e.g., glucose, C6H12O6) ou aminoácidos (e.g., leucina, C6H13NO2) ambos na faixa de 4 Kcal/grama pois os ácidos graxos são menos oxigenados (oxidados) ou dito de outra maneira, com mais hidrogênios disponíveis para serem ?queimados? nas mitocôndrias e daí o interesse de sua ocorrência ou proporcionalidade na dieta, além do inconveniente da sobra ou obesidade numa época em que corpos ?saradões? (independentemente da idade) viraram moda. Cobra bastante atenção na mídia de início de 2006 a questão do risco das gorduras ditas trans.

Óleos vegetais (líquidos à temperatura ambiente) e gorduras animais (sólidas nas mesmas condições) compõem a variada família dos TGAs (triacilgliceróis ou triglicerídios) ou seja entidades químicas alimentares lipídicas onde cada molécula de glicerol (parte fixa) se une a três ácidos graxos (parte variável). Quatro dos ácidos graxos mais comuns em óleos e gorduras são os saturados palmítico (C16:0) e esteárico (C18:0) e os insaturados oléico (C18:1) e linolêico (C18:2). A gordura e o sebo bovino são mais ricas nos 2 primeiros enquanto o óleo de soja, girassol, milho, colza e oliva são mais ricos nos 2 últimos. Lembrar o caso intermediário do alaranjado óleo de dendê ou palma na prateleira de supermercado: tem sempre uma fase líquida (TGAs em que predominam ácidos graxos insaturados ou de menor cadeia carbonada) e outra sólida (TGAs onde predominam ácidos graxos saturados ou de maior cadeia carbonada). Um ácido graxo saturado (e.g., palmítico) é definido como aquele em que todas valências dos átomos de carbono (exceto a distal que é um grupo carboxila) são preenchidas com hidrogênios {CH3 – (CH2)14 – COOH}. Um ácido graxo insaturado (e.g., linolêico; di-insaturado ) é aquele em uma fração dos carbonos (e.g., 4/18), medianos na cadeia, não está completamente saturado com hidrogênios devido à ocorrência de insaturações ou duplas ligações {CH3-(CH2)7-(CH=CH)-(CH2)-(CH=CH)-(CH2)4-COOH}. A existência de uma dupla ligação ou falta de um par de hidrogênios a cada insaturação enseja que os 2 fragmentos de cadeia carbonada que lhe sejam vizinhos espacialmente se distribuam no mesmo plano (?lado?) da molécula e neste caso ter-se-á um lipídio cis. Em caso contrário, com distribuição em planos (?lados?) opostos, o lipídio terá a configuração trans.

Há uma antiga informação dos livros de Bioquímica que aportam um exemplo claro de evolução de gordura cis para trans mediante aquecimento ou tratamento ácido. É a conversão do ácido cis 9-octadecenóico (ácido oléico) em trans 9-octadecenóico (ácido eláidico). Embora sejam isômeros com a mesma composição molecular ou números de átomos de carbono, hidrogênio e oxigênio, o ponto de fusão (temperatura de liquefação) do ácido oléico é de apenas 5 ºC (portanto é líquido à temperatura ambiente de 25ºC) enquanto que a do ácido eláidico é de 44ºC (portanto sólido nas mesmas condições). Daí pode-se projetar a dificuldade de metabolização do segundo, sua facilidade de formar agregados menos solúveis (a molécula é menos dobrada e ?empacota? mais facilmente) e alguma implicação, também, no equipamento enzimático para a degradação, dada a isomeria ou distribuição espacial dos segmentos da cadeia carbonada. Um exemplo é que os acidos graxos trans interferem com a enzima 6 desaturase envolvida na produção das prostaglandinas. Curiosamente, a aplicação de maior pressão durante a hidrogenação não favorece a formação trans. O USDA verificou que o aquecimento entre 140 e 170º C a 200 psi de pressão gerava apenas 17% de gordura trans enquanto o mesmo aquecimento a 20 psi resultava em 40%.

Do brevemente exposto surge uma aparente contradição. Se um óleo (líquido) é hidrogenado (rompendo e saturando as duplas ligações) para convertê-lo em margarina (estado físico mais compatível com uma gordura sólida) como pode aumentar a ocorrência de gordura trans no produto se as duplas ligações foram eliminadas? (quimicamente, não há sentido em se aplicar a denominação cis ou trans a um lipídio totalmente saturado). A resposta é que o tratamento de hidrogenação é parcial (não visa eliminar todas duplas ligações) e envolve a aplicação de calor (favorecendo a transição cis-; trans). Certo é que alimentos pré-aquecidos (margarinas, bolachas, bolos, pudins e assemelhados) sempre terão um índice de gordura trans mais elevado em relação aos óleos vegetais nativos que pudessem ter sido obtidos como se procede no óleo de oliva extra-virgem (expressão a frio) já que a ocorrência natural favorece, em muito, a configuração cis (mais saudável ao organismo consumidor). Um parcela muito pequena dos ácidos graxos da manteiga, leite bovino e carnes gordas é do tipo trans. Daí a essencialidade de que nos óleos vegetais, gorduras e alimentos industrialmente derivados a rotulagem indique claramente o tratamento físico a que foram submetidos e sobretudo o tratamento químico de hidrogenação se parcial ou total. O FDA (Food and Drug Adfminsitration) do governo yankee estabelece que cada porção de alimento comercializado não precisa especificar o conteúdo de ?trans fat? (gordura trans) se o conteúdo total de lipídios é menor do que 0,5 g / porção. Neste caso consta no rótulo a inscrição ?não é uma fonte significativa de gordura trans?. O inverso também é verdadeiro e neste caso a especificação do conteúdo de trans deve vir em linha exclusiva e destacada. Obviamente nos rótulos norte-americanops inexiste um DV (Daily Value – Valor Diário) para gordura trans pois o ideal é que estas inexistissem nos alimentos.

Não se trata, paralelamente, de demonizar as gorduras ou lipídios saturados. Do ponto de vista estritamente químico são mais estáveis quando comparadas às insaturadas, estas sujeitas à rancificação sobretudo as polinsaturadas como os tão propalados ácidos ômega 3 e 6 (a dupla liga é um sítio ótimo para a entrada de oxigênio e daí a geração de um peróxido que pode evoluir a radical livre).

O mesmo FDA, com base em relatórios científicos pelo IOM / NAS (Institute of Medicine / National Academies of Science, pelo NCEP (National Choleterol Education Program e pelo Dietary Guidelines for Americans/2000 do USDA (US Department of Agriculture) conclui que os ácidos graxos (gorduras) trans contribuem para aumentar o nível de LDL (LipoProteínas de Baixa Densidade) ou ?colesterol mau? por sua vez implicadas como fator de risco para doença cardíaca (coronariana).

Quanto à outra questão: manteiga ou margarina? Deve se considerar a soma de todos fatores em jogo: total de gorduras saturadas, gordura trans e colesterol (exógeno, o da dieta). A Tabela anexa, em gramas por porção (uma colher de sopa) é auto-explicativa. A melhor opção é a margarina macia (levemente hidrogenada; mole; cremosa). Melhor ainda a dieta matinal que vimos recentemente em Sevilha: pão untado com óleo de oliva extravirgem (zero em colesterol e em gordura trans) e café não adoçado. Sabedoria espanhola.

José Domingos Fontana (jfontana@ufpr.br) é professor emérito da UFPR junto ao Departamento de Farmácia, pesquisador do CNPq e prêmio paranaense em C&T. 

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