Júlio Verne e sua relação com a Amazônia

Neste ano de 2005, a França e o mundo homenageiam o centenário de morte de Júlio Verne (1828-1905), um dos romancistas mais imaginativos e populares. Espírito extraordinariamente curioso, foi um grande leitor. Nutria sua cultura nas enciclopédias e nos periódicos que lia sistematicamente todos os dias. Soube como ninguém revelar os sonhos da sua época, expondo as visões de um novo mundo.

Suas especulações baseavam-se numa documentação científica impressionante que acumulava antes de iniciar os seus romances. A essas pesquisas se associava uma imaginação literária e poética de grande sensibilidade político-social que valorizava a importância da ciência e da tecnologia.

Como disse o filósofo e escritor Michel Serres: ?Desde a morte de Verne falta um escritor que dê à ciência o valor que ela merece?. Até hoje, o próprio nome Júlio Verne evoca as imagens de um mundo onde o cientista era uma mente preocupada em preservar um futuro feliz e justo para a humanidade.

A jangada

O que poderia justificar que sete anos depois da publicação do Chancellor (1874), Júlio Verne tenha retornado às águas amazonenses? Nesse primeiro romance, numa jangada construída com partes do navio Chancellor, onze homens e mulheres visitaram as águas do Rio Amazonas, em total miséria. No completo desespero de náufragos, sem água para beber, preparavam-se para sacrificar um dos sobreviventes a fim de servir de alimento para os demais, quando um dos náufragos caiu no mar. Ao mergulhar, bebeu alguns goles de água, descobrindo que se tratava de água doce. Os náufragos são recolhidos ao alcançarem a Ilha de Marajó.

O romance La Jangada – huit cents lieues sur l?Amazone (A jangada, oitocentas léguas pelo Amazonas, 1881), é o primeiro de três romances de Júlio Verne consagrados exclusivamente ao curso de rios (os outros dois são: Le Superbe Orénoque, de 1898 e Le Pilote du Danube, de 1908). Ao contrário do que ocorreu no Chancellor, a trajetória da jangada se dá no sentido oposto: a embarcação construída numa pequena aldeia desce o Amazonas.

La Jangada é o relato de uma viagem até Belém, realizada pela família de um próspero fazendeiro que habitava Iquitos. O romance tem um duplo objetivo. O primeiro – anunciado para todos os membros da família -, era o casamento de Minha, a filha de João Garral, com um colega de estudos do irmão dela; o segundo era a solução de um problema jurídico de natureza criminal.

Na realidade, João, o pai, tinha as suas razões secretas: mesmo correndo o risco de uma execução, desejava obter a revisão de uma sentença que o condenara injustamente à morte pelo roubo de diamantes, 26 anos antes. Na época em que foi acusado, Garral trabalhava nas minas imperiais do Brasil em Vila Rica (hoje Ouro Preto), sob o nome verdadeiro de João da Costa. Depois de escapar à perseguição das autoridades foi morar em Iquitos, onde fez fortuna. De lá, partiu para recuperar sua inocência, depois de mais de um quarto de século.

Uma vez que o objetivo anunciado era um projeto familiar, Garral imaginou um meio de transporte que permitisse deslocar-se com toda a família. Com esta finalidade decidiu pela construção de uma enorme jangada, na verdade, uma gigantesca aldeia flutuante, capaz de conduzir todos os membros de sua fazenda pelo rio abaixo até Belém.

Ronaldo Rogério de Freitas Mourão é astrônomo e fundador e primeiro diretor do Museu de Astronomia e Ciências Afins, autor de mais de 75 livros, entre outros livros, do ?Explicando a Teoria da Relatividade.? Consulte a homepage: www.ronaldomourao.com

Profunda admiração pela natureza

Ao lado dessa visão preconceituosa encontramos as mais belas, e por que não dizer, poéticas descrições sobre a natureza amazônica, nas palavras da personagem Minha:

?Nada de mais magnífico que a parte direita do Amazonas. Aqui, numa confusão pitoresca, se levanta uma grande quantidade de árvores diferentes, que, no espaço de um quarto de légua quadrada, podemos contar até cem variedades dessas maravilhas vegetais. (…) É uma sinfonia curiosa perante a qual nenhum indígena pode ficar indiferente. (…) Aqui se revelam os mais belos representantes da ornitologia tropical. Os papagaios verdes, as araras barulhentas parecem ser os frutos naturais dessas gigantescas essências?.

Essa profunda admiração pela extraordinária megabiodiversidade é talvez um dos pontos mais objetivos da obra de Verne.

Diante do entusiasmo de Minha com referência à beleza e à riqueza da floresta amazônica, ela proíbe o irmão de usar o fuzil como caçador. Nesse trecho do romance, encontramos uma das mais belas conceituações relativas aos princípios do que seria a ecologia, disciplina científica que teve somente o grande desenvolvimento na segunda metade do século XX. Era a extraordinária perspicácia de Júlio Verne em antever os princípios do equilíbrio ecológico, justificando, sem dúvida, a admiração que cerca o trabalho de antecipação científica do escritor francês. (RRFM)

Com a globalização, miscigenação é ampla

A intensificação da miscigenação, ao longo do tempo, inicialmente circunscrita a regiões bem delimitadas, como no caso das povoações amazônicas, mostrou que as previsões dos seguidores das doutrinas racistas estavam totalmente equivocadas. Com a globalização, a miscigenação não se limita a determinadas regiões: ela hoje, além de mais ampla, é também cultural.

A própria obra de Júlio Verne, em virtude da sua preocupação com a geografia – não se deve esquecer que Verne foi membro da Société de Géographie de Paris -, defendeu uma integração, ou melhor, uma globalização cultural e racial (talvez se vivesse atualmente seria contra a globalização econômica).

No romance A volta ao mundo em oitenta dias (1872), Verne ao fazer o seu personagem Fogg, em sua viagem ao redor do mundo partir de Londres e retornar à mesma cidade, além de chamar atenção para a questão do paradoxo dos circunavegadores, assumiu indiretamente uma posição a favor de Greenwich como o futuro Meridiano Zero, como seria adotado, em 1884, na cidade de Washington.

Com relação ao paradoxo, Verne sempre reconheceu ter sido influenciando pela leitura do conto Três domingos numa semana, de Edgar Allan Poe; no entanto, essa idéia teve origem no século XVI, durante as grandes descobertas marítimas. Todavia, os romances relativos a viagem da Terra à Lua: De la Terra à la Lune (1864) e Autour de la Lune (1869) constituem a grande tomada de posição em relação ao futuro.

Apesar das suas considerações de natureza ecológica, em La Jangada, refletirem a idéia predominante da época, este romance constitui um valioso retrato do que iria ocorrer no século XX na Amazônia. Nesses quatro romances, como em toda sua obra, Júlio Verne, além de assumir uma visão globalizante, deu uma dimensão humanística e favorável à ciência e às suas aplicações tecnológicas jamais conseguidas por outro divulgador até os dias de hoje.

Um estudo comparativo dos textos de Júlio Verne sobre sua preocupação com a exatidão científica a respeito das construções pelo viés do estudo dos conhecimentos de sua época, mostra que Verne os ultrapassou pelo aspecto visionário, o que é comprovado pela evolução dos conhecimentos que validam várias de suas antecipações quanto ao futuro, em terrenos tão diferentes como a Terra em suas profundidades, sua vasta extensão ou seu espaço imediato. (RRFM)

Interesse do autor é razão da escolha amazônica

A razão pela qual Júlio Verne – considerado o criador do romance geográfico – retornou à Amazônia está, sem dúvida, associada ao seu interesse de estudar – sob o ponto de vista geográfico – todas as regiões do globo terrestre; em especial aquelas que, por serem pouco exploradas, possuíam um belo aspecto misterioso, capaz de atrair não só a sua admiração, mas principalmente a dos seus leitores. Aliás, seu interesse pelas viagens exploratórias estava associado à sua devoção pela natureza, em particular, características exóticas que envolviam a floresta amazônica, assim como a liberdade que dominava a vida nessas regiões longe da civilização.

O longo período de sete anos, que decorreu entre os romances Le Chancellor e La Jangada, deve estar associado ao seu grande interesse em concluir sua pesquisa sobre a Amazônia. Com efeito, as referências ao Rio Amazonas e à floresta são sempre de admiração, os personagens se manifestam assim:

?O maior rio de todo o mundo!?.

?O mais admirável e vasto sistema hidrográfico que existe no mundo!?.

Os viajantes: fontes bibliográficas de Verne.

Aliás, toda a visão sobre esse imenso território, que despertou o interesse dos viajantes estrangeiros que desde o século XVI estiveram explorando e relacionando a riqueza da região: Orellana, oficial de um dos irmãos Pizarro, desceu o Rio Negro em 1540; Pedro Teixeira, o português que subiu o Amazonas até o encontro com o Rio Napo, em 1636; La Condamine, cujas pesquisas permitiram estabelecer de forma científica o curso do Amazonas, tendo sido completada por Humboldt e Bonpland, 55 anos mais tarde.

O próprio Júlio Verne relacionou os nomes de inúmeros exploradores e cientistas que estiveram na Amazônia. Através de suas obras, Verne construiu a base científica do seu romance.

Na realidade ?dezenas e dezenas de aventureiros que exploraram e reviraram a região de ponta a ponta?, como muito bem definiu Michel Riaudel, que concluiu, enquanto esperava ser ?beneficiado nessas viagens?. O Brasil ambicionava controlar melhor um território subpovoado enquanto as potências financiadoras esperavam tirar vantagens políticas, econômicas ou comerciais.

É fácil verificar em Verne a visão do mundo dominante na época em que foi escrito o livro. Hoje a riqueza da Amazônia é ambicionada pelos estadunidenses que a desejam internacionalizar. (RRFM)

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