Cana-de-açúcar: um doce e amplo agronegócio (II)

Pão e vinho mais as outras variantes de fermentações alcoólicas compõem o segmento clássico da biotecnologia, desde o mais remoto dos tempos. Na intervenção de Raphael Katzen, reputado consultor norte-americano em tecnologias de biomassa, durante o debate que sustentamos juntamente com a professora Gisella Zanin, da UEM, sobre o PROÁLCOOL, em Fort Collins, Colorado, USA, em maio de 1999, o programa brasileiro para o etanol foi ressaltado como o maior, em volume, no mundo todo da biotecnologia clássica. E isto antes do sucesso que também vem alcançando, mundo afora agora, a cachaça brasileira, orgânica ou não. É longa a história da cana-de-açúcar cujo berço é atribuído à Polinésia alguns milênios a.C.. Seu futuro, sem limites.

Nosso País chegou, em 1986, à invejável produção de 699.183 veículos movidos à etanol (> ¾ de toda produção veicular brasileira e uma frota cumulativa, em 1993, de > 4 milhões de veículos; dados da ANFAVEA), número este que regrediu para cerca de apenas 1% de veículos novos a etanol, uma década depois. Um retrocesso lamentável para um ato inteligente de soberania tecnológica. Agora, uma década a mais, com o revolucionário sistema designado de flex-fuel ou bicombustível (motor funcionando desde gasolina pura até etanol puro e todas misturas intermediárias), a indústria automobilística retoma o tempo perdido. Acolado, começa também sua decolagem o programa brasileiro de biodiesel cuja síntese requer o mesmo etanol para formatar os óleos vegetais e gorduras animais como energia combustível.

O setor sucro-alcooleiro nacional, com o substantivo aporte paranaense, avança a passos largos (v. Tab. 1). São mais de 5 milhões de ha cultivados, mais de 50.000 plantadores de cana, mais de 300 destilarias, mais de 1,2 milhão de empregos diretos e 4 milhões de indiretos. Após o “puxão de orelhas” do Sr. Presidente da República no 1.º trimestre de 2003 (falta momentânea de etanol anidro para garantir a adição de 25%, por volume, na gasolina, o que incrementa a octanagem e reduz a poluição atmosférica da emissão veicular em cerca de ¼), aos usineiros não custou muito suor elevar a produção nos acordados 10%. Com a crescente demanda asiática (Japão, Coréia e China) um salto maior deverá ocorrer em 2005. Cabe recordar que o consumo de açúcar (cristal e refinado) no Brasil é da ordem de 52 kg per capita, mais do que o dobro da média mundial e o terceiro tipo, demerara, tem destinação industrial preferencial juntamente com o 4.º tipo, o liquefeito.

Embora resida no caldo a maior riqueza volumétrica (e também gravimétrica da cana) (v. Quadro 2), o bagaço como tal (semi-seco) arroja para a sede energética das usinas uma parcela substancial, pois cada kg do mesmo (que chegou a ser negociado por até R$ 50,00 / t em São Paulo, frente a um default de meados de safra de apenas R$ 8,00 / t) brinda 1.800 Kcal. A cana paga ao fornecedor ronda o mínimo de R$ 28,00 e o máximo de R$ 36,00 / t. Ao PR está garantida uma quota de geração de 240 MW por conta do bagaço e algumas usinas já negociam dentro do PROINFA. Embora a combustão do bagaço tenha se tornado uma opção até disputada para suprir a necessidade energética de cada usina (e mesmo a venda do excesso gerado em favor de redes estaduais de energia elétrica ou outros segmentos consumidores), sua uniforme composição em celulose : lignina ; hemicelulose (54 : 31 : 29) ou seja, cadeia carbono-hidrogenadas igualmente nobres, tem recebido sólidos investimentos para P&D (Pesquisa e Desenvolvimento), o que está tornando os horizontes do Quadro 3 (itens b e c) já viáveis nos países mais desenvolvidos. O caldo de cana que não é diretamente destinado à fermentação etanólica é progressivamente desidratado para forçar a cristalização do maior componente, a sacarose. O subproduto, o melaço, concentra sacarose residual, além da glucose e frutose e outros subcomponentes úteis para ulteriores processos fermentativos geradores de ácidos cítrico, láctico e glutamato (base do Shoyo, tão apreciado pelos orientais) embora o destino corrente seja, em quase sua totalidade, para reforçar a produção do etanol. Mesmo o meio de fermentação residual, o vinhoto, é fonte de sais estratégicos (e.g., potássio, que volta à lavoura) ou ponto de partida para isolamento de produtos secundários de fermentação (e.g., óleo fúsel ou mescla de álcoois superiores como o amílico empregado na indústria de plásticos e vernizes). Com a reciclagem da levedura viva, cada ciclo fermentativo (dias na época de Pasteur) se reduziu ao expediente padrão: apenas 8 horas. Competência brasileira.

Fermento bendito que garante o pão e a cerveja, a levedura clássica, Saccharomyces, além de um conteúdo de proteína de 40% a 50% do peso seco, contém ainda 5% gordura insaturada (maiormente triglicerídios e fosfolipídios dos saudáveis ácidos palmitoleico (75%) e olêico (25%) e ainda um complexo de vitaminas: B1 tiamina, B2 riboflavina, B6 piridoxina e PP niacina. Alimento nobre tanto para fins humano quanto animal na forma de proteína unicelular ou SCP, Single Cell Protein (e.g., ração para peixes). No PR, a usina Vale do Ivaí tem projeto já operacional especialmente direcionado para a exploração deste segmento, pois para cada litro de mosto fermentado até etanol restam 13 g de levedura seca e este título de biomassa microbiana de alto valor nutricional pode ser incrementado em até 4 x, se aprimorada e redirecionada a tecnologia fermentativa. De subproduto, a levedura vai assumindo contornos negociais de probiótico. Não veio, o fermento paranaense, de nenhuma “caixa-preta” importada. Foi selecionada pelos próprios usineiros a partir do fermento comercial.

Na fronteira político-administrativa se redescobre (na mesma fonte solícita, culta e transparente, o eng. agron. Paulo Adalberto Zanetti) que foi um concerto de habilidades políticas paranaenses o responsável pela ruptura da camisa-de-força imposta manu militari no final dos anos 80, garantindo então ao PR (época do governo Alvaro Dias) a primazia de 1.º Estado “pós-revolução” a se beneficiar de uma quota extra de 4 milhões de sacas de açúcar e romper a estagnação que então reinava no setor sucro-alcooleiro local. O mesmo empreendedorista Zanetti não poupa elogios aos interlocutores que a ALCOPAR teve e tem na UFPR (nas pessoas dos profs. Marcos Souza, Edelclaiton Daros, José Luiz Camargo Zambon e o casal Canziani, do setor de Ciências Agrárias) seja atuando na estação experimental de Paranavaí (herança do extinto IAA) na consolidação de novas variedades seja estruturando ações dentro do CONSECANA-PR para uma normatização e normalização de uma política de preços mais estável e transparente na qual se apoiarão o plantador, o usineiro e o consumidor.

Retomamos o tema ao nível de laboratório e prospectamos o bagaço paranaense (provido pela Vale do Ivaí e Corol) para uma outra benesse ali presente: fitoreguladores para olerícolas. É isolar, caracterizar e repassar ao outro Zanette, o Flávio, catarinense bom na micropropagação de coisas paranaenses.

José Domingos Fontana

(jfontana@ufpr.br) é pesquisador 1-A do CNPq, 11o. Prêmio Paranaense em C&T (1996) e fundador do LQBB ? Laboratório de Quimio/Biotecnologia de Biomassa (1982) na UFPR. Pesquisador e Orientador Voluntário nas Pós-Graduações de Ciências Farmacêuticas e Bioquímica/Biologia Molecular-UFPR.

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