As potentes toxinas de anfíbios

figura6031206.jpgSeria o caso de dizer: nos menores frascos, os mais potentes venenos ou remédios? Observando os hábitos de caça da tribo indígena Emebrá Choco da Colômbia (e provavelmente de seus primos venezuelanos, peruanos e brasileiros) se nota que os dardos da zarabatana vão impregnados, mortiferamente, com a secreção colhida nas costas e por detrás dos olhos de pequenas rãs da floresta. Trata-se da batracotoxina de pequenos anfíbios do gênero Phyllobates e espécies terribilis e bicolor, cujo comprimento médio é de apenas 4 cm. Essa toxina e algumas outras variantes químicas estruturais são alcalóides esteroidais extremamente potentes em sua ação cardiotóxica e neurotóxica.

Outras fontes naturais da toxina, além das pequenas rãs, são alguns besouros da família Melyridae (e.g., Chorysine pulchra) e algumas aves (e.g., Pitohui ou Ifrita kowaldi), porque estas tem como hábito se alimentar dos ditos besouros. Outras rãs taxonomicamente avizinhadas do gênero Dendrobates também produzem toxinas dérmicas, mas são menos potentes que as produzidas por Phyllobates. A dose letal média (DL50) da toxina destas últimas para um homem de 70 kg (extrapolando dados de laboratório obtidos para ratos) seria de pouco mais do que 100 microgramas ou seja 1 décimo de miligrama (1 ou 2 cristalzinhos de sal de cozinha). A espécie mais venenosa terribilis pode acumular até 2 mg de toxina ou seja o suficiente para matar 20 homens adultos. Quando a rã é assustada, agitada ou sente dor, ela libera, pelos canais epidérmicos, a secreção que contem a toxina.

Os relatos indicam que a prática indígena de coleta de toxina não teria a aprovação de nenhuma ONG de proteção à biodiversidade: a rã viva é empalada e colocada sobre um braseiro; com a dor provocada pelo calor advém a secreção da toxina, na qual, então, é embebida a ponta da flecha de caça. Embora não existam estudos conclusivos, a fonte mais provável da toxina seria algum vegetal do qual se alimentam os besouros, por sua vez deglutidos pelas rãs. A rã colocada em cativeiro, mesmo bem alimentada, não produz a toxina. Obviamente, não se exclui a possibilidade de que o inseto e/ou rã estejam modificando quimicamente algum fito-substrato nativo. Caberia à Entomologia Brasileira, estudando o hábito alimentar do besouro, rapidamente identificar a fonte botânica do princípio bioativo ou precursor. Isto antes que a biopirataria internacional o faça.

figura9031206.jpgEnquanto neurotoxina lipossolúvel, a batracotoxina age diretamente nos canais de sódio da membrana plasmática envolvidos na geração do potencial de ação e modificando sua seletividade iônica e sensitividade de voltagem. Isto causa um efeito direto no sistema nervoso periférico (SNP). Aqui a toxina causa, de forma seletiva e irreversível, uma permeabilidade aumentada ao sódio por parte das células em repouso, sem alterar contudo as concentrações de potássio e cálcio. Tal influxo de sódio despolariza então a membrana. Nos músculos, a ação da toxina é mortal, pois ela bloqueia a transmissão dos sinais nervosos que dirigem a volta ao relaxamento muscular. O segundo mecanismo de ação da batracotoxina é ao nível cardíaco, gerando arritmias, extra-sístoles, fibrilação ventricular e outras alterações que culminam com a parada cardíaca. De um modo geral, a toxina induz uma liberação massiva do neurotransmissor acetilcolina nos nervos e músculos, o que leva à destruição das vesículas sinápticas. Na rã, parece haver uma modificação estrutural da proteína plasmática, impedindo que a toxina se ligue a um receptor, o que torna o animal imune ao veneno. Entretanto, há algumas rãs, como a Pseudophryne corroboree australiana, que são capazes de sintetizar os alcalóides chamados pseudofrinaminas, também acumulados na pele juntamente com outra série de alcalóides, as pumiliotoxinas – estas efetivamente absorvidas a partir de uma dieta baseada em formigas dos gêneros Brachymyrmex e Paratrechina. Embora letais em doses elevadas, as pumiliotoxinas, em doses reduzidas, são cardiotônicas, podendo potencializar o batimento cardíaco, permitindo maior fluxo sanguíneo com menor ritmo de batimento cardíaco. Tal propriedade teria aplicação em cardiologia para corrigir patologias como a falha cardíaca congestiva e arritmia. Ainda no tocante a aspectos farmacologicamente benéficos de toxinas de anfíbios, a epibatidina, um derivado da nicotina, atua, em altas doses, como um depolarizador dos receptores nicotínicos dos gânglios e sua bioatividade anestésica é 200 vezes mais potente do que a da morfina, sem contudo provocar sedação ou adicção (pois atua nos receptores nicotínicos e não nos receptores opiáceos).

figura10031206.jpgNão há tratamento consolidado para o envenenamento com batracotoxina. O que se pode fazer a título experimental é tratar de reverter a depolarização de membrana mediante a aplicação de outras toxinas com efeitos antagônicos, como é o caso de tetrodotoxina (isolada do peixe-balão ou tipo de baiacú, Lagocephalus laevigatus, da família Tetraodontidae ou seja de 4 dentes) e de saxitoxina (de algas dinoflageladas). Interessantemente, a tetrodotoxina também é encontrada em duas rãs, Atelopus chiriquiensis e Atelopus varius (rã-arlequim) encontrada na Costa Rica e Panamá.

Como pergunta final: o que ganha a pequena rã ostentando cores escandalosas e acumulando na pele tão potente toxinas? A resposta é simples: sobrevivência, afastando os predadores com ambos expedientes. Com uma exceção, ainda que para confirmar a regra: a cobra Liophis epinephelus, se não imune, é pelo menos resistente à batracotoxina e ataca, engole e digere Phyllobates sem maiores problemas gástricos ou neurológicos.

figura11031206.jpgAs pequenas rãs parecem ser uma fonte quase inesgotável de princípios bioativos cabendo lembrar que do gênero Phyllomedusa (sapo ?kampu?) foram isolados dois minipeptídeos: a dermorfina (potentíssimo analgésico que contém um aminoácido raro D-alanina ao invés do comum L-alanina) e a deltorfina (corretor da isquemia, que antecede os derrames). Apenas a Universidade de Kentucky (EUA) já detém 5 patentes nas aplicações destes peptídeos.

José Domingos Fontana (jfontana@ufpr.br) é professor emérito da UFPR junto ao Departamento  de Farmácia, pesquisador do CNPq e prêmio paranaense em C&T.

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