Nova leitura do artigo 222, §§ 1º e 2º do CPP

O artigo 222, §§ 1.º e 2.º, do Código de Processo Penal, expressamente prevê que a expedição da precatória não tem o condão de suspender o curso da instrução criminal, e que findo o prazo assinado para o cumprimento da deprecata, poderá ser dado prosseguimento ao feito, inclusive com realização do julgamento.

Ocorre que com a nova ordem constitucional surgida com a Magna Carta de 1988, em todos os aspectos ligados aos direitos e garantias do cidadão, ela deixou expresso que tais direitos devem prevalecer sobre todos os demais, sendo inclusive matéria contida no preâmbulo desta Lei Maior, ao deixar assentado que a Carta Magna ?tem como fundamento a dignidade da pessoa humana? (art. 1.º, inciso III).

Mais adiante, ai já fixando os princípios, a Constituição Federal deixou expressamente assentado que ?aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e à ampla defesa,? (art. 5.º, inciso LV).

Diante desta nova realidade jurídica constitucional, há que se fazer uma releitura do citado artigo 222, nos §§ 1.º e 2.º, do Código de Processo Penal, haja vista que esta norma é datado do ano de 1941, não sendo, ao nosso ver, dito dispositivo recepcionado pela atual Carta Magna.

A propósito disso, apenas à guisa de exemplo, cabe observar que outros artigos do Código de Processo Penal sofreram nova interpretação após a Constituição de 1988, tal qual ocorreu com o artigo 594, o qual expressamente prevê que ao condenado que não for primário ou não possuir bons antecedentes não é conferido o direito de apelar sem recolher-se à prisão.

Com a nova ordem constitucional dando primazia aos direitos relacionados com ?a pessoa humana?, assim como elevação a preceito constitucional o princípio da presunção de inocência (art. 5.º, inciso LVII), tal dispositivo foi reinterpretado, onde agora a sua aplicação não é admitida simplesmente quando esteja presente a falta de primariedade ou de bons antecedentes do acusado, sendo necessário além deste requisito, também que se encontrem presentes os requisitos necessários para a decretação da prisão preventiva, com a presença dos pressupostos para prisão cautelar, segundo o disposto no artigo 312, do Código de Processo Penal.

Neste caso, dito normativo legal passou a ser interpretado, não de forma literal, mas sim sistemática, onde o regramento infraconstitucional, como óbvio, acomodou-se segundo a previsão constitucional, prevalecendo o preceito contido na Lei Maior.

A propósito disso, hoje é pacífico em nossos Tribunais, inclusive nos Egrégios Supremo Tribunal Federal e Superior tribunal de Justiça, que mesmo sendo o condenado reincidente ou portador de maus antecedentes, havendo respondido o processo em liberdade, somente não poderá apelar sem recolher-se a prisão caso estejam presentes os requisitos para o encarceramento preventivo.

Ainda quanto a esta matéria, a jurisprudência encaminha-se para ir além, onde nas hipóteses atrás aventadas, sendo decretada a prisão do condenado na sentença, o recebimento do seu recurso não fica condicionado à sua prisão, justamente para se adequar ao preceito constitucional da ampla defesa também contemplado na Lei Maior.

A interpretação do citado artigo 222 e §§ 1.º e 2.º, de forma literal, possibilitando que o processo siga seu curso ainda que não haja retornada a precatória para oitiva de testemunhas, certamente que tal procedimento implica em maltrato à ?ampla defesa?, a qual tem vinculação direta com a ?dignidade da pessoa humana?, apresentando conflito entre o disposto na norma infraconstitucional e constitucional.

Neste caso a interpretação deve ser levada a efeito de forma sistemática, dando-se prevalência aos preceitos da Lei Maior em relação à norma ordinária.

E qual seria então esta interpretação?

Deve-se em qualquer circunstância levar em consideração o respeito à ?ampla defesa?, por se tratar de preceito constitucional, sendo indispensável que a norma infraconstitucional agasalhe tal princípio.

Assim, prevalece a regra do citado parágrafo primeiro, no sentido de que ?a expedição da precatória não suspende a instrução do feito? excluído do conceito de instrutória a fase dos artigos 499 e 500, do Código de Processo Penal.

Isto porque o prosseguimento da instrução criminal até a tomada dos depoimentos das testemunhas da acusação e defesa, quando ainda pendente o cumprimento de precatória para oitiva de testigos, desde que não haja inversão processual, não importa em prejuízo à ampla defesa.

Já o parágrafo segundo prevendo que findo o prazo marcado para cumprimento da precatória, sem o seu retorno, poderá ser realizado o julgamento do acusado, há que ser interpretado no sentido de que somente após o retorno da deprecata e sua juntada aos autos, poderá o feito ser encaminhado às fases dos artigos 499 e 500, do Código de Processo Penal, com posterior julgamento.

Portanto, para que se respeito o princípio da ampla defesa, não é possível sequer que o feito seja remetido para a fase do artigo 499, do Código de Processo Penal, antes de juntada aos autos a última precatória, porque a prova nela colhida poderá indicar, v.g., a necessidade da defesa requerer a oitiva de pessoas referidas pela testemunha, requisição de algum documento ou diligência que servirão para esclarecer os fatos, cujo momento processual para o seu requerimento é justamente este.

Por outro lado, não é possível se pretender que por falha do Poder Judiciário em cumprir os prazos legais, pelos seus próprios agentes, seja por negligência destas autoridades, seja por falta de estrutura estatal, venha o acusado a ser penalizado com o cerceamento de sua defesa.

E neste particular há que se levar em conta que são poucas as Comarcas que têm agenda para cumprir precatórias, em trinta, quarenta e cinco ou sessenta dias, ou até mesmo mais dias, e ainda contados da sua expedição e remessa.

Diante de uma prestação jurisdicional morosa do nosso País, na sua maioria não por obra ou culpa das partes, mas sim da estrutura (ou falta) do Poder Judiciário, não é possível se pretender que ?findo o prazo marcado? na precatória, o juízo possa prosseguir o feito, inclusive proferindo julgamento.

E veja-se que atualmente a demora para colheita de prova testemunhal através de precatória, em regra não pode ser atribuída ao acusado ou à defesa, porque se encontra pacificado na nossa jurisprudência que para a realização de ato fora da terra não há necessidade de intimação do réu ou de seu defensor.

É certo que nas hipóteses em que se possa verificar que a defesa tenha contribuído, intencionalmente, para procrastinar a realização da audiência deprecada, deve-se aplicar a regra do artigo em comento, não havendo nulidade neste caso, incidindo o disposto no artigo 563 do Código de Processo Penal, segundo o qual ?nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou defesa.?

Portanto, pela nova ordem constitucional todos os dispositivos legais que contemplem disposições que afetem suas previsões e/ou princípios, necessitam de uma releitura, tanto pela nossa doutrina quanto jurisprudência, a fim de se enquadrarem às novas regras constitucionais.

Assim, não há dúvida de que a interpretação do artigo 222, §§ 1.º e 2.º, do Código de Processo Penal, não pode ser levada a efeito de forma literal, sendo imprescindível que seja interpretado de maneira sistemática de forma a agasalhar a nova realidade constitucional, porque ela é o comando de todo o sistema legal do País.

Feitas estas considerações pensamos que tais dispositivos não autorizam que a ação penal possa ser encaminhada às fases dos artigos 499 ou 500, do Código de Processo Penal, e muito menos o seu julgamento, enquanto pendente de cumprimento precatória expedida para oitiva de testemunha residente em outra comarca, sob pena de maltrato aos princípios da ampla defesa e do contraditório, o que importa em nulidade absoluta do feito, argüível em qualquer momento, por se tratar de matéria de ordem pública, ainda que transitada em julgado a decisão condenatória, sendo neste caso o habeas corpus o caminho mais curto.

Jorge Vicente Silva é advogado, professor de pós-graduação da Fundação Getúlio Vargas e da Escola Superior da Advocacia da OAB/PR, pós-graduado em Direito Processual Penal pela PUCPR, autor de diversos livros publicados pela Editora Juruá, dentre eles, ?Tóxicos -Análise da nova lei?, ?Manual da Sentença Penal Condenatória?, e no prelo ?Crime Fiscal – Manual Prático?. E-mail: jorgevicentesilva@jorgevicentesilva.com.br; advocacia@jorgevicentesilva.com.br,
Site jorgevicentesilva.com.br

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