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Loja maçônica em Campo Largo enfrenta processo por estelionato

O castelo quebra a paisagem da ruazinha estreita de terra em um lugar afastado de Campo Largo. Fotos: Daniel Caron.
O castelo quebra a paisagem da ruazinha estreita de terra em um lugar afastado de Campo Largo. Fotos: Daniel Caron.

O castelo quebra a paisagem da ruazinha estreita de terra em um lugar afastado de Campo Largo. Em estilo medieval, guardada por duas grandes gárgulas [aquelas estátuas no formato de aves assustadoras] encravadas no topo, a construção cinza dá um aura quase à la Hitchcock ao Jardim Cristo Rei, um bairro humilde da cidade da Região Metropolitana de Curitiba. E, claro, mexe com os brios até de quem já se acostumou a conviver com ela.

“Sei que é um templo. Mas o que fazem ali dentro, só Deus sabe”, comentou com a reportagem uma vizinha, moradora da área há 14 anos – cinco deles divididos com o prédio de pedra. Se é intrigante por fora, por trás dele há uma história não menos nebulosa, que envolve uma disputa na sempre misteriosa maçonaria e acusações de uma série de crimes.

O castelo campo-larguense é sede de uma loja maçônica – o jargão dado aos locais em que ocorrem os ensinamentos dessa doutrina. Porém, o Soberano Santuário da Maçonaria sequer é reconhecido pelas principais autoridades maçônicas do país. Pior. Embora seus líderes a descrevam como uma “ala liberal” da ordem, para o Ministério Público do Paraná, não passa de uma organização criminosa. Seus dirigentes estão sendo processados pelo MP por crimes de estelionato e formação de quadrilha, com golpes no estilo de pirâmide financeira. Porém, enquanto o processo segue em trâmite, em segredo de Justiça, a casa continua funcionando com métodos à revelia dos propagados por maçons tradicionais.

Em sua página na internet, o Soberano Santuário diz atuar há 15 anos. Mas o CNPJ registrado na Receita Federal aponta para a constituição da empresa em 2010, com o nome de Loja Mista do Rito Memphis-Misraim – de acordo com o site, a loja prega uma maçonaria de tradição egípcia. O nome-fantasia, porém, mudou após o templo ter sido temporariamente fechado em 2014 por uma operação da Polícia Civil, a Castelo de Areia, que culminou na denúncia do MP à Justiça.

O método de angariar membros, no entanto, não. Os interessados em se tornar maçons dessa ordem precisam apenas preencher uma ficha básica de cadastro no site ou via telefone, como informou nesta semana uma atendente. Imediatamente, segue ela, são oferecidas apostilas para a introdução no universo da maçonaria – não há análise do interessado, como ocorre na maçonaria tradicional. É preciso adquirir sete delas antes de um ritual de iniciação. Segundo a atendente, os livros não são cobrados; a loja pede apenas uma contribuição. Mas, na prática, a contribuição é obrigatória e tabelada: uma apostila custa R$ 49,90; o combo com três, R$ 99; com sete, R$ 209. São mais de cem apostilas na doutrina toda, aponta.

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Além da facilidade de filiação, o Soberano Santuário diverge da maçonaria tradicional por um gosto peculiar pela exposição. A loja ostenta anúncios, alguns de página inteira, em grandes veículos de comunicação. De acordo com o site, os anúncios são semanais. Segundo um levantamento feito pela Folha de S. Paulo, o valor gasto com publicidade pode ter superado R$ 2 milhões somente nos últimos três meses de 2017. E mais, o grupo investe em pílulas televisivas, de poucos minutos, que explicam sua visão de maçonaria e angariam novos membros. Nos programetes chamados de “Maçonaria na TV”, o casal Samuel Mineiro da Trindade e Bianca Moreira da Silva, líderes da loja, aparecem em um fundo projetado, com um certo ar de misticismo, mas declarando que “vão revelar todos os segredos da maçonaria” ou que “tornarão a ordem acessível a todos”. Uma das bandeiras é a da presença feminina, vetada por algumas alas tradicionais. Os programas já foram veiculados em canais abertos, como a Band, mas hoje circulam apenas nos canais por assinatura.

Apesar da aparente estratégia de superexposição, o Soberano Santuário é reticente em falar com a imprensa. A reportagem tentou por dias contato por telefone, mas sem sucesso. A primeira conversa com Trindade só ocorreu por aplicativo de mensagem. Após mais dias de negociação para uma entrevista, somente via texto, sem que ele atendesse ao telefone, Trindade topou e falou com a reportagem. No entanto, em um segundo contato, para abordar temas judiciais, o líder recuou e retirou todas as informações sobre o funcionamento da loja, além de não se pronunciar sobre as ações do qual ele, a esposa e seus sócios são réus.

Processos

O principal processo que os comandantes do Soberano Santuário enfrentam é movido pelo MP, que aponta o grupo como uma organização criminosa. De acordo com a denúncia inicial, de 2014, à qual a reportagem teve acesso, o casal e outras cinco pessoas se associaram para praticar estelionato, no estilo pirâmide financeira. Três vítimas são citadas pela promotoria – somente uma delas perdeu R$ 185 mil neste golpe. Na operação Castelo de Areia, que deflagrou a operação, a Polícia Civil indicou que o total obtido poderia chegar a R$ 4 milhões nos três anos anteriores.

Segundo o MP, o grupo se aproximava de interessados em participar da ordem e os convencia a emprestar dinheiro para a obra, com garantia de devolução a juros mais altos do que os praticados no mercado. Para enganar as vítimas, diz o ministério, o grupo usava cheques-caução inválidos e pagava as primeiras parcelas do empréstimo, incentivando a vítima a fazer novos depósitos, com valores mais altos. Era aí que o golpe se consumava. O grupo então deixava de pagar a vítima e alegava problemas financeiros. Para que elas não denunciassem à Justiça, o Soberano Santuário indicava que havia feito a troca de diretores e começava um jogo de empurra-empurra entre eles. Para a promotoria, Trindade era o mentor intelectual.

O processo corre na 9ª. Vara Criminal de Curitiba, mas não é o único. Outros lesados disseram ter entrado com ações na Justiça contra o templo. Um ex-membro, que não quis ter sua identidade divulgada, diz que os dirigentes do santuário usaram cheques em seu nome sem sua permissão. O desfalque financeiro supera os R$ 10 mil. Outros ex-adeptos ouvidos pela reportagem sugerem formas variadas de arrancar dinheiro. Um deles, que também não quis ter seu nome divulgado, disse ter sido lesado recentemente em R$ 3 mil após a loja convencê-lo a participar de um ritual de magia para enriquecer – mais um tópico condenado pelos maçons tradicionais.

Não são as únicas polêmicas envolvendo os dirigentes; sobretudo, o casal de líderes. Em 2015, eles chegaram a ser presos suspeitos de estupro e cárcere privado de uma garota de programa. Segundo a moça, ela teria sido obrigada a beber e a participar de rituais sexuais. À época, o casal assumiu tê-la contratado, mas negou as alegações. A prisão não durou, já que não havia flagrante. A ação referente a este processo já foi arquivada. Hoje, é outro assunto no qual Trindade prefere não tocar.

Em seu site, porém, o Soberano Santuário faz referência às acusações e em uma seção chamada “Esclarecimentos”. O grupo sugere que a loja é vítima de uma campanha difamatória. “A provável insegurança dos dirigentes da maçonaria tradicional diante da iniciação de novos maçons, que no Soberano Santuário da Maçonaria se multiplicam como o milagre dos pães, fez com que covardemente imputassem falsas acusações. Isso nunca foi, para nós, novidade alguma. Aliás, desde a fundação de nossa ordem maçônica, somos frequentemente atingidos por injustos desgastes morais provocados pela inquisição falsamente silenciosa. Eventualmente alguns detratores se unem, intensificando então uma verdadeira ‘caça às bruxas’” diz a nota.

Embora atribua as acusações ao medo da maçonaria tradicional de perder adeptos, o Soberano Santuário não revela o número de frequentadores de sua ordem. Em 2014, segundo a Polícia Civil, eram cerca de 10 mil.

loja-maconica3Alas tradicionais

Se hoje briga com as alas tradicionais, Trindade já fez parte dela. O líder do Soberano Santuário foi iniciado em uma loja chamada Acácia Curitiba Número 23, filiada à Grande Loja do Brasil (GLOB). Quem descreve é Walmir Battu, que diz ter acompanhado o início dessa relação, no começo da década passada. Maçom de outra obediência [o nome técnico dos grupos], Battu ajudou na instalação da nova ordem na cidade. “Em pouco tempo, Trindade passou de aprendiz para companheiro. Meses depois, ele recebeu a exaltação, virou mestre. Mas logo em seguida se envolveu em um escândalo com uma revenda de carros e fugiu, foi para São Paulo”, relembra.

Battu, que é detetive particular, diz ter participado dessa busca a Trindade, em 2005. Na ocasião, ele havia sido preso em Osasco, São Paulo, suspeito de aplicar um golpe em um amigo de Campo Largo – esse processo, no entanto, foi arquivado. Ainda assim, a mancha criminal serviu para sua expulsão da GLOB. A exoneração foi publicada em um decreto interno, um rito natural na sociedade maçônica. Muito pela exposição da ordem a tais fatos. Segundo Battu, que é mestre em uma ala tradicional da maçonaria, é algo que “contribui para essa visão negativa da ordem”.

Quando criou a nova loja, a relação entre Trindade e as alas tradicionais piorou. “Aquilo ali é uma aberração. Na maçonaria, de modo geral, o ingresso de um interessado só se faz mediante apresentação de um padrinho. E esse padrinho pode ser um maçom de uma outra obediência ou da própria obediência. Quando um indivíduo ingressa na obra ele já tem o compromisso de ir apresentando a outros. Essa é a tradição centenária, a da sondagem”, explica Battu. “Quando não tem um padrinho apresentando, a ordem sonda, entrevista, vai cercando, até ter a convicção de que o interessado será um ótimo obreiro, um ótimo maçom, que vai trabalhar pela ordem e pela sociedade, como propõe a maçonaria”, diz, sobre o rito.

Esse procedimento é corroborado por outros mestres de diferentes lojas ouvidos pela reportagem. Via de regra, o interessado é submetido a três sindicâncias: uma financeira, uma social e outra profissional. É feito um relatório, ele é votado e discutido. O processo dura meses, às vezes anos. Em determinada data, a obediência diz para o interessado se ele será iniciado e em que data. Mas a essa altura já se tem tudo, um dossiê da vida. “A ordem sabe se ele é fiel, honesto e dedicado. O que ele [Samuel Trindade] está fazendo é uma contradição à maçonaria. Ele está vendendo a qualquer preço, leiloando, distribuindo graus. O negócio dele é grana. Está fazendo propagandas, televisão. Tudo contra os costumes da ordem”, critica Battu.

Também não é procedimento padrão enviar as apostilas [lições maçônicas] pelo correio. Segundo os tradicionais, esses estudos só podem ser feitos na loja.

Alguns setores cogitam ações por charlatanismo contra a ordem, mas mesmo elas admitem a dificuldade em se tipificar esse crime. “Há muito misticismo sobre a maçonaria, que é na verdade uma sociedade filosófica, para elevação intelectual. Mas como os ritos são discretos, e não públicos, abre brechas para a atuação de gente mal-intencionada”, disse uma das fontes, ligada à maçonaria tradicional, na condição de anonimato.

O Soberano Santuário discorda. Em texto publicado em seu site, defende que “a maçonaria, não sendo propriedade de ninguém, não é controlada por um poder central mundial”. “Nenhuma instituição maçônica no mundo pode se considerar proprietária da maçonaria e de seu ensino, bem como, nenhuma instituição é proprietária do simbolismo místico e esotérico do esquadro e do compasso. Não existe instituição maçônica nacional ou mundial para conferir ‘regularidade maçônica’ a quem quer que seja”, completa o texto, em um prenúncio de que devem, ao menos por hora, continuar na ativa.

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