Para uma construção da memória

O episódio ocorreu em abril de 2005, no Reino Unido. Andreas Grassl tinha 20 anos quando foi encontrado encharcado dentro de um terno preto e uma camisa de traje a rigor. Mostrava-se bastante assustado e sem nenhuma memória. Não pronunciou uma única palavra durante quatro meses, mas revelou-se um grande pianista. O fato foi o ponto de partida para a concepção de Homem Piano – uma instalação para a memória, novo trabalho da CiaSenhas de Teatro, que estreia no próximo dia 8.

O trabalho, designado como performance ou a busca da representação para além dos limites convencionais, incorpora a realidade de um homem prisioneiro do seu próprio corpo e dos lugares. Para a montagem idealizada coletivamente, o ator Luiz Bertazzo e a diretora Sueli Araújo (que também assina a dramaturgia) buscaram sobretudo uma outra relação com o público, agora não mais visto como a habitual plateia apenas observadora e silenciosa.

A montagem – a ser vista às 16h, 18h ou 20h – expõe ângulos de um personagem desprovido de lembranças que compartilha suas emoções, dúvidas e impressões partindo da não-existência de ideias e imagens passadas. É ele que nos recebe na calçada em frente ao espaço da CiaSenhas, na rua São Francisco, e propõe um compartilhamento de memórias.

Para entrar em sintonia com o meio, somos convidados a escrever em um pequeno pedaço de papel uma lembrança que gostaríamos de esquecer: uma palavra, uma atitude, uma data, um lugar. Assim, acompanhamos o ritual do esquecimento durante o percurso de deslocamento pelos três andares, cujas salas foram despidas de qualquer arranjo cenográfico que não se fizesse essencial ao trabalho. “Fomos tirando tudo e o espaço foi se mostrando”, conta Sueli.

A mala carregada pelo personagem é a metáfora para indicar o viajante sem lugar, que não tem ponto de chegada nem de partida. O trajeto no espaço chamado de “lembrança” passa por ambientes onde o branco predomina em uma estética “crua” que atrai o espectador para os pequenos detalhes. “Queríamos transformar o espaço em potência, entender o que ele diz para nós. É um exercício de desprendimento, tem que pensar tudo em uma outra perspectiva”, diz Sueli.

Em uma das salas, há somente sutis divisórias de fitas de papel fixadas em locais sugeridos pela própria arquitetura do prédio. “Os papéis colados com fita crepe sugerem menos um significado e mais uma sensação, que é a de fragilidade”. A diretora acrescenta mais um motivo para uma cena na qual o ator escreve com giz branco na parede da mesma cor: “queríamos poder decidir se as palavras iam ser vistas ou não”.

Processo

A pesquisa teve inicio em 2008 para o projeto Narrativas Urbanas – interferências e contaminações, um exercício prático de criação compartilhada em que os artistas observam a paisagem urbana, se deixam contaminar por ela e criam cenas-depoimentos a partir de fatos veiculados pela mídia. A historia do Homem Piano acabou se desdobrando nos primeiros impulsos criativos do projeto de pesquisa cênica.

Na primeira ação da pesquisa, Luiz esteve em vários pontos da região central de Curitiba para “colher” memórias. “Homem sem memória aceita memórias alheias. Colabore”, dizia a placa instalada junto ao ator. Convidadas a contar algo sobre suas vidas, muitas pessoas foram colaboradoras indiretas da montagem.

“Queria ir pra rua. Saber se a idéia de memória suscitava dúvidas e tinha empatia com o público. Isso ajudou a construir um corpo, trouxe referência do que as pessoas sentem”, lembra o ator.

O fato real ficcionalizado como uma narrativa que se alicerça na relação com o intérprete é compartilhado com o outro, que se torna parte da experiência proposta pela dramaturgia. “Gosto bastante da possibilidade de pessoas que vêm de lugares ,diferentes se tornarem um mesmo corpo afetivo e coletivo”, completa Sueli.

Esse corpo coletivo é que vai constituir a memória renovada e em permanente mutação do trabalho, que se coloca sempre aberto a interferências e contribuições. Ao priorizar somente o essencial, o aspecto sensorial chega ao espectador por meio do afeto. “Era necessário um lugar onde as pessoas tivessem sensações. Nada podia levar para outro lugar que não fosse o da experiência”, sustenta a diretora.

Serviço

Homem Piano – uma instalação para a memória.

De 8 a 18 de julho (todos os dias exceto dia 14), às 16h, 18h e 20h. CiaSenhas de Teatro (Rua São Francisco, 35 – Centro). Entrada Franca – 20 lugares. Informações: (41) 3222-0355 / homempiano.blogspot.com.