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‘O Dia Depois’, diálogos feitos de sutilezas e desacertos

Já se disse que ele é o Eric Rohmer da Coreia do Sul. E, de fato, suas tramas intimistas, com muitos diálogos, focalizando a amizade ou as intrigas amorosas, fazem lembrar as do mestre francês da nouvelle vague. Talvez também por isso os Cahiers du Cinéma tenham em tão alta conta Hong Song-soo, cuja obra mais recente, O Dia Depois, é apresentada na Mostra.

Em preto e branco, o diretor coreano desenvolve sua estética da intimidade, com a história de um editor casado e suas aventuras maritais e extraconjugais. Sua mulher descobre um bilhete amoroso endereçado a sua secretária e amante e tem aí início a crise conjugal. E também uma história de equívocos, já que a esposa vai tomar satisfações com outra mulher, uma nova secretária recém-contratada.

O filme tem no começo o que os Cahiers definiram como uma das sequências mais violentas de Hong Song-soo. Por aqui, entenda-se: não se trata de derramamento de sangue ou mesmo de uma agressiva troca de insultos. É “apenas” o encontro tenso entre o marido e a mulher que se supõe traída. O homem toma seu café da manhã, enquanto a esposa o questiona. Ele poderia ter se livrado com uma mentira. Mas não o faz. E enfrenta a situação com a dignidade que lhe ocorre. Nem afirma nem nega. A mulher compreende tudo.

Há outras cenas assim. Em especial a longa conversa entre o homem, Bongwan, e a nova funcionária, a belíssima Areum (Kim Min-Hee), no primeiro dia de trabalho. Eles saem para almoçar, tomam uns tragos, ganham intimidade e a moça começa a questioná-lo. Aqui também a violência “simbólica” aparece. Em meio a todas essas mulheres, Bongwan é o elo mais frágil. Mas também o mais manipulador.

É formidável a maneira como Hong Song-soo enquadra os personagens. Se o fizesse de maneira diferente, o filme seria outro. Guarda de Rohmer a sobriedade da câmera e enquadra os personagens, em geral em duplas, evitando o campo-contracampo. A câmera enquadra os dois ou pula de um para outro, dando ao espectador a sensação de vivacidade que as cenas exigem.

Como no anterior À Noite na Praia, também neste os diálogos são fundamentais. São filmes que se resolvem tanto na imagem como nas palavras. Afinal, é no verbo e por ele que nos desvelamos. E as incertezas da vida, o lotérico da existência, que separa a felicidade da infelicidade, se exprime através das nossas pobres palavras. E da maneira como as usamos para nos situarmos neste caos que é uma vida, por ordenada que pareça.

Esse cinema intimista nos lembra que a modernidade pode ser buscada, por paradoxo, numa estética que lembra a dos anos 1960. Não importa. Há estilos que nascem contemporâneos de todos os tempos, por assim dizer. Como aliás, escrevia Carlos Drummond de Andrade, quando afirmava que desistira de ser moderno para ser eterno. E com isso, de fato, eterno se tornou.

Com seu cinema da palavra e do estilo visual sóbrio, Hong Song-soo nos faz notar o quanto de sutileza e de desacerto subjazem ao aparentemente mais banal dos diálogos. É nas entrelinhas que se lê. E que se vê. Sutileza é o nome da coisa.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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