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Irmãos Dardenne mostram, em ‘A Garota Desconhecida’, que a culpa move o mundo

Freud dizia que é a culpa e não a fé que remove montanhas. Os irmãos Dardenne parecem encampar essa tese em seu novo filme, A Garota Desconhecida.

Algo da trama será preciso revelar. A doutora Jenny Davin (Adèle Haenel) está com seu estagiário no consultório quando toca a campainha. O horário do expediente acabou e ela não atende. No dia seguinte, fica sabendo que uma garota foi morta nas imediações.

Esse é o início do que poderíamos chamar de filme policial-metafísico. Ou religioso, se quiserem. Mas também político. Como uma Antígona moderna, Jenny decide que aquela mulher não pode ser enterrada numa cova de indigente sem que ninguém saiba seu nome. Obstina-se em descobrir quem foi aquela mulher, qual o seu nome, por que foi morta. Obviamente, produz incômodo em muita gente, de colegas à polícia, de pacientes a marginais perigosos.

Há algo de tão obstinado quanto comovente na determinação dessa médica de aparência frágil e determinação de aço. Mas não apenas. A partir do crime, Jenny comporta-se cada vez mais como uma santa, que nada nem ninguém conseguirá deter no caminho daquilo que ela considera como justo. Há em Jenny algo de O Idiota, de Dostoievsky. Alguém tão puro que destoa neste nosso mundo imperfeito.

E, de fato, Jenny entra em dissonância com expectativas já fragilizadas por um mundo moral instável como o nosso. Alguém tão justo parece inverossímil. No íntimo de cada espectador talvez reverbere uma inquietação: “Quem se importaria com a vida e a morte de uma garota humilde, uma anônima, uma nulidade social?” E, aí está: Jenny se importa. E outras pessoas da história também se importam. Sente-se culpada e busca expiar a culpa pela reparação simbólica de dar nome a um corpo morto e anônimo.

Por outro lado, Jenny é pintada como aquilo que se poderia hoje chamar de “caricatura de médico”. Houve um tempo em que se definia o métier médico como “sacerdócio”. Neste mundo altamente mercantilizado, Jenny não pensa senão em seus clientes. Ela é jovem, mora sozinha, não se sabe se tem relacionamentos ou amizades. Não larga seu Iphone para nada (às vezes parece até merchan da Apple). Fora isso, é uma médica à antiga, que visita os doentes em casa, trata dos que não têm dinheiro para pagar, imiscui-se na vida familiar, dá conselhos, apesar da pouca idade.

Esta é outra figura da inverossimilhança. Causa a mesma estranheza que podemos ter ao ler um livro dos anos 1940 como Olhai os Lírios do Campo, de Érico Verissimo, com seu protagonista Eugênio, que, pelo sofrimento, deixa de lado suas ambições materiais e se converte em médico de gente pobre.

Daí talvez possamos encontrar o caminho para gostar – e talvez gostar muito – de A Garota Desconhecida. Deixando de lado seu clássico registro realista, os Dardenne estariam propondo desta vez mais uma fábula moral do que uma dura descrição das asperezas sociais tais como elas se dão. Estas estão no filme, mas agora contrapostas a uma figura de santidade que as torna ainda mais expressivas. Num mundo materialista, Jenny é uma figura da caridade, símbolo de uma religiosidade laica, se permitem a expressão contraditória. A última cena do filme favorece essa interpretação.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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