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Cora tinha duas paixões: a caneta e o tacho

Quando Cora Coralina atravessou a Ponte da Lapa em 1956, quatro décadas depois de deixar a casa da infância em busca do seu destino, como escreveu, ela não pretendia ficar. Voltou para resolver problemas burocráticos e “para matar saudades velhas e carregar saudades novas”, como a ouvimos contar no filme Cora Coralina: Todas as Vidas, que estreia agora.

Deixou filhos, netos e bisnetos em São Paulo. “Longe do Rio Vermelho, fora da Serra Dourada, distante dessa cidade, não sou nada, minha gente”, ela escreveu depois. E ficou lá, na velha casa deserta, domando a memória que voltou com toda a força, como ressalta o biógrafo Clóvis Carvalho Britto, até morrer, em 1985, aos 95 anos.

Essa volta é a cena mais bonita para Walderez de Barros. É a Cora de 58 anos que está ali, e é Walderez que a interpreta neste retorno. Mas não só ela – e este é um dos achados do diretor Renato Barbieri na opinião da atriz. “Quando ela está voltando para Goiás Velho e passando pela ponte, ele filma comigo, com a Tereza, com outras. Ela está voltando depois de 45 anos para aquela casa, mas carrega todas as vidas dentro dela, inclusive a que virá”, diz Walderez à reportagem.

Essas vidas todas são mencionadas nos depoimentos, que vão dando pistas de sua longa caminhada – e do que fez em cada pouso. O início e o fim são na cidade de Goiás. Mas Cora passa alguns anos na Fazenda Paraíso. Depois, deixa a região com o futuro marido rumo a Jaboticabal. Com os filhos crescidos, a família vai para São Paulo – e então ela se vê viúva vendendo livros para a José Olympio de porta em porta. De lá, segue para Penápolis, onde entra para a Ordem Terceira de São Francisco. Em Andradina, faz de seu sítio pousada de boiada.

Cora levou 20 anos para conseguir comprar de volta a casa velha da ponte – o dinheiro que ganhava com os doces que fazia, usado para as contas do dia a dia, para ajudar os necessitados e para pagar a casa, era guardado no colchão. A doceira Cora virou lenda, e ao longo dos anos milhares de turistas bateram à sua porta atrás dos famosos doces glaceados. “Fiz os melhores doces da minha cidade e talvez do meu País”, ouvimos Cora dizer com sua voz orgulhosa e já fraquinha. Vendia os doces, mas não perdia a chance de mostrar aos visitantes seus poemas.

Com a vida encaminhada, decide cuidar de seus escritos. Quer publicar Poemas dos Becos de Goiás e Outras Histórias Mais, e, como lembra sua filha Vicência, ela ingressa num curso de datilografia. E datilografa seus manuscritos e os envia à José Olympio. Aos 75 anos, em 1965, estreia na literatura e o lançamento é notícia no Suplemento Literário, do jornal O Estado de S. Paulo.

Mais tarde, em 1980, um texto de Carlos Drummond de Andrade publicado pelo Jornal do Brasil apresenta Cora Coralina a novos leitores e sua fama cresce.

Atriz experiente, Walderez de Barros conta que ficou nas nuvens com o convite para interpretar a poeta, teve medo e se acalmou quando leu o roteiro e entendeu a intenção do diretor: ela não seria a única Cora – porque se fosse, e se fosse para retratá-la de forma realista, não aceitaria.

Atuar onde a poeta viveu, estar em sua casa, que hoje é um museu, ver seus objetos, a cadeira onde ela sentava, o fogão onde fazia seus doces, ela conta, foi muito emocionante. E relembra que se aproximou disso tudo com cuidado. “Tenho muito respeito por esses lugares mágicos. Eles conservam a energia da pessoa que esteve lá. Eu me aproximo com cuidado para não atrapalhar essa energia. Foi muito emocionante principalmente por eu saber que estava participando de um filme com essa complexidade, que não estava simplesmente contando uma história. Biografia… biografia você dá uma googlada e fica sabendo”, diz.

Para a atriz, Cora foi uma mulher genial e pé no chão, que narrou sua vida em seus poemas. Ela completa: “Quem faz um trabalho como fazer um doce, mexer aquele tacho, é uma pessoa de verdade. E você lê a poesia dela e pensa: que força tem essa mulher. Ela era fantástica”.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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