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Olho vivo

Rede de óticas continua ofertando testes visuais grátis e dando desconto nos óculos pra quem se consulta com médico indicado

Pouca coisa mudou mais de um mês depois que a Tribuna mostrou a prática adotada por uma rede de óticas do Centro de Curitiba, que oferece testes de visão gratuitos feitos por vendedores para quem passa em frente a uma de suas 11 lojas e ainda indica médicos para seus clientes. Em novas visitas feitas por nossa equipe às lojas das Óticas Visomaxx, verificamos que os testes e as “parcerias” com os médicos continuam, sendo realizados da mesma maneira. Apenas o banner que oferecia testes grátis e brindes foi substituído por outro material, que agora, além do teste, recomenda que as pessoas consultem um oftalmologista.

Leia mais: Abra o olho: Teste visual em ótica é confiável?

No último dia 30 de agosto, um dos nossos repórteres – que nunca usou óculos e não tem problema de visão – foi abordado ao passar pela loja localizada na Praça Rui Barbosa. Ele gravou a conversa com uma câmera escondida. Após passar pelo exame, ele ouviu da vendedora que teria astigmatismo, uma imperfeição na curvatura do olho que pode provocar visão turva. Mas, segundo a funcionária da ótica, isto não seria um diagnóstico. “Eu só te aponto o que você tem, o que a máquina dá, é como nas antigas máquinas do Detran. Agora você precisa fazer uma consulta para ver qual o grau que você precisa usar de óculos”, disse ela.

Para confirmar o problema de visão, a vendedora o aconselhou a procurar um dos médicos que trabalham em parceria com a empresa. “A gente tem dois médicos que atendem, se você quiser. Como eles indicam muita receita para a gente, a gente retribui. De R$ 120 (a consulta), você paga R$ 50. Mas a gente precisa levar você para você ter o desconto”, revelou a funcionária da ótica.

Horário marcado

Ao passar por lojas da ótica, uma repórter da Tribuna também recebeu indicação para passar por uma consulta com um dos médicos “conveniados”. Na loja da Rua Marechal Deodoro, quase na esquina com a Rua Monsenhor Celso, depois de olhar algumas armações, ela teve sua consulta marcada com o profissional.

“Depois dos orçamentos dos óculos, eles queriam que eu fosse fazer consulta com o oftalmologista que eles indicam, num prédio quase ao lado da ótica. Eu disse que não podia naquele momento, mas que voltaria. Então, o vendedor me deu um papel com o horário das 17h marcado com o tal Dr. Douglas. Mas ele não me deu sobrenome do médico, nem o endereço exato do consultório. Disse que era pra eu ir a ótica, que ele me levava até o consultório. A consulta ia custar R$ 50. Mas tinha que ir junto com o pessoal da ótica, pois se eu fosse lá por conta, sem a indicação, a consulta custa R$ 100”.

Consulta grátis

Em outra loja da mesma rede, na Rua Marechal Deodoro, na esquina com Avenida Marechal Floriano, a repórter também foi orientada a buscar o médico que oferece desconto nas consultas para quem compra na ótica. Caso escolhesse uma armação mais cara, que custava cerca de R$ 900, a consulta com o médico sairia de graça. Já na filial da Rua Barão do Rio Branco, a indicação dos vendedores foi buscar por um dos muitos médicos que atendem em um prédio do Centro da cidade.

Ao questionar se poderia fazer o teste de visão no equipamento que fica na entrada das lojas, a jornalista não foi convidada a fazer o exame e ainda ouviu dos vendedores a mesma resposta: que “o aparelho era para quem não sabia exatamente se precisava usar óculos ou não. Era um teste apenas para ver se a pessoa enxerga bem ou não”.

Prática ilegal

Entrevistado em julho deste ano pela Tribuna, o médico oftalmologista João Alberto Holanda de Freitas, ex-presidente e membro do conselho consultivo da Sociedade Brasileira de Oftalmologia (SBO), disse que não é seguro realizar exames de visão em óticas, mesmo os mais simples, pois ao se submeter ao teste, o cliente acredita estar fazendo uma avaliação global da sua saúde ocular. “Quem faz diagnóstico é o médico e não o balconista da ótica. E fazer exames com um vendedor é ilegal, eles não têm competência para concluir se o cliente tem ou não uma doença ocular”.

Foto: Giuliano Gomes.
Foto: Giuliano Gomes.

De acordo com o oftalmologista, descontar na venda dos óculos o valor da consulta cobrada por um médico indicado pela ótica também é proibido. “Isso não pode, é venda casada, que deve ser condenada. Com a receita na mão o cliente tem a liberdade de escolher a loja para aviar a sua receita”. Segundo ele, também não é permitido abordar as pessoas e utilizar panfletos ou banners, anunciando os testes de visão.

O que diz a Visomaxx?

Procurada pela reportagem no último mês de julho, a proprietária da Visomaxx, Adriana Dias, comentou que “o teste visual através da Tabela de Snellen pode detectar somente se o cliente tem limitação visual, indicando que ele deve procurar seu oftalmologista para fazer o exame de vista”. Ela ressaltou que, ao realizar o teste visual, o cliente é informado que não se trata de exame de vista, não fornece receita, nem aufere grau. “E todas as óticas Visomaxx têm um técnico óptico responsável que conduz a aplicação dos testes visuais, capacitando os vendedores. Entretanto, qualquer pessoa pode realizar este teste, inclusive existe versão ‘online’ disponível para autoaplicação”, comentou, na ocasião. A empresária alegou ainda que os descontos concedidos na negociação não têm qualquer relação com o desembolso pelo atendimento médico. “Não temos nenhum contato com o oftalmologista onde o cliente fez a consulta. Isto porque a Visomaxx não indica médico. Não temos qualquer ingerência na escolha do cliente”, afirmou.

Luta pela regulamentação

Ser o caminho mais curto entre a população e os primeiros cuidados com a saúde visual. É isto o que propõe a optometria, uma profissão reconhecida pelos ministérios brasileiros da Educação e do Trabalho e bastante difundida em mais de 130 países, como Canadá e Estados Unidos, mas ainda pouco conhecida no Brasil e que não possui regulamentação em todas as cidades do território nacional. Em algumas cidades e estados, como Santa Catarina, São Paulo, Bahia e Espírito Santo, a atuação dos optometristas é legal. Mas em Curitiba, o entendimento da Justiça é desfavorável a estes profissionais.

Franklin conta como é o trabalho de um optometrista. Foto: Felipe Rosa.
Franklin conta como é o trabalho de um optometrista. Foto: Felipe Rosa.

Segundo os optometristas, que precisam fazer graduação de até cinco anos ou curso técnico para poderem trabalhar, o atendimento prestado por eles visa ajudar as pessoas a enxergarem melhor. Eles realizam testes que podem apontar a existência do que chamam de “erros refrativos” da visão, como miopia, hipermetropia, astigmatismo e presbiopia. Problemas que podem ser corrigidos com o uso de óculos ou lentes de contato, mas que não necessitam da utilização de medicamentos ou intervenções nos olhos, como as cirurgias, deixando para os oftalmologistas os casos mais complexos.

Optometrista há dois anos, Franklin Kerber, 36 anos, conta como trabalham os profissionais da área: “O paciente nos procura com algum tipo de demanda relacionada à visão ou saúde visual e ocular. Cabe a nós, como optometristas, fazer esta primeira avaliação para garantir que o indivíduo não tenha nenhuma doença associada à visão ou que se manifeste através dos olhos ou da visão. O maior motivo dos nossos pacientes nos procurarem é exatamente porque percebem que não enxergam bem a uma certa distância, ou de perto ou de longe”, diz.

Durante o atendimento, segundo Kerber, são feitos testes e a observação com a ajuda de equipamentos, para avaliar fundo de olho, condições motoras do olho, movimento oculares e fixação. O optometrista ainda explica que somente após os exames é definido se a pessoa precisará passar por um médico, seja ele um oftalmologista, neurologista ou de outra especialidade médica que tenha relação com algum sinal encontrado nos olhos do paciente.

Impasse

Não sendo uma profissão regulamentada em Curitiba, de acordo com o advogado do Conselho Regional de Óptica e Optometria do Estado do Paraná (CROO-PR) em Curitiba, Fábio Merger, as decisões sobre os limites da atuação do optometrista seguem avaliações jurídicas antigas e defasadas.

“Existe uma progressão história em relação sobre as supostas proibições aos optometristas, baseadas em dois decretos, um de 1932 e outro de 1934. Nesta época inclusive, o profissional que existia se chamava ótico prático, que é muito diferente do profissional de hoje, que tem formação. E quando os decretos surgiram, nem mesmo havia um especialista médico para tratar dos olhos. Muito tempo passou e as leis permaneceram sem avanços”, ressalta o advogado. Segundo ele, a partir de 2008 o Superior Tribunal de Justiça (STJ) passou a ter vários entendimentos favoráveis à optometria, embora não exista uma análise consolidada.

Segundo o advogado, a questão é discutida nos tribunais e conta com a interpretação de cada juiz. Em julgamento hoje há uma ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental) e casos individuais. “A ADPF 131, que tem como objetivo questionar os decretos de 1932 e 1934, que hoje, em alguns lugares são interpretados como impeditivos para que os optometristas atuem. Além dos decretos, você não tem nenhuma restrição à optometria. Existem também projetos de lei para regulamentar a optometria já apresentados, mas hoje eles estão arquivados”.

Foto: Felipe Rosa.
Foto: Felipe Rosa.

O que dizem os médicos?

O presidente do Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO) Homero Gusmão afirma que “o Congresso Nacional já decidiu no ano de 2011, arquivando o projeto de lei que buscava a regulamentação da optometria”. Segundo ele, “já havia e ainda há lei federal que impõe os limites de atuação do optometrista. Temos conhecimentos da atuação de optometrista em outros países, que inclusive, a exemplo dos EUA, estão vendo agora a gravidade desta atuação ilimitada”.

Para o presidente do CBO, regulamentar a optometria em território nacional não traria benefícios aos pacientes. “Caso a população seja atendida por profissional não médico, temos um risco muito grande, da ausência de diagnóstico adequado”. No entanto, segundo Gusmão, a classe médica não é contrária à regulamentação da profissão. “É um equívoco o argumento utilizado pelos optometristas, de que esta ‘ocupação‘ não é regulamentada. Os decretos 20931/32 e 24.492/34 definem bem quais são os limites de atuação do optometrista, que não podem ter consultório para atender clientes, realizar consultas, exames e prescrever óculos ou adaptar lentes de contato por que isso, por lei, são atos médicos. A nossa defesa é que seja cumprida a lei vigente e seja fiscalizada qualquer tipo de atuação irregular ou ilegal nesse sentido”.

Segundo Gusmão, a Lei do Ato de 2013 define que são atos privativos de médico a determinação do prognóstico relativo ao diagnóstico nosológico, que á a conceituação da doença que acomete o ser humano. Além disto, para o CBO, miopia, hipermetropia e astigmatismo, por exemplo, não são apenas erros refrativos, já que estão referenciadas na versão atualizada da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde como CID H52.

De acordo com o Decreto 21.942 de 1934, os optometristas estão aptos para manipular ou fabricar lentes de grau, fazer o aviamento de receitas óticas fornecidas por médico oculista, substituir por lentes por outras de grau idêntico e datar e assinar diariamente o livro de registro do receituário de ótica. “O optometrista é o profissional ideal para ser o responsável pela ótica e a fabricação das lentes. Mas não para diagnosticar e tratar doenças, visto que isso compete ao médico. Esses atos são atos privativos de médicos e somente esses, por definição legal, podem realizá-los”, frisa o presidente do CBO.

Sobre o autor

Paula Weidlich

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