Almirante Tamandaré

Tem volta?

Escrito por Giselle Ulbrich

Viciados em drogas contam como é sair do fundo do poço

“Aos 26 anos eu estava fora do controle. Eu era o único que não percebia o transtorno que o meu vício causava. Eu estava sempre culpando alguém. Eu achava que não era culpado daquilo”, diz Marcelo Alexandre Schmidt, 50 anos, que deixou para trás casa, esposa e filhos para viver o mundo das drogas nas ruas. Começou adolescente exagerando no álcool e nos 15 anos de vício foi evoluindo para outras drogas.

Luciano Marques, 39 anos, também viu a vida se afundando. Mas diferente da maioria dos viciados, por conta própria largou tudo para se tratar. Alcoólatra, começou abusando do álcool ainda na adolescência. Cada dia bebia mais e, já homem maduro, perdeu três ótimos empregos. Mas ambos mostram que é possível se recuperar e voltar a uma vida ‘limpa‘. Porém, é preciso força de vontade.

O limão da caipirinha

Marcelo começou no vício ainda criança, com uma atitude que muitos adultos enxergam como inocente. Nos churrascos da família, gostava de chupar o limão que sobrava da caipirinha. Aos 11 anos, começou a beber em casa. O consumo foi amentando até que, na adolescência, foi evoluindo para drogas cada vez mais pesadas. Casou, teve filhos, mas durante algum tempo conseguia conciliar estudo, trabalho e família. Só que aos 26 anos Marcelo não tinha controle sobre nada mais.

Aos 27 anos internou-se numa comunidade terapêutica, reabilitou-se e desde então leva uma vida normal. Desde então passou a ajudar na recuperação de outros drogados. Há cinco anos ele é um dos coordenadores da Casa de Recuperação Água da Vida (Cravi), em Almirante Tamandaré.

"Eu usava o álcool para amenizar a solidão", diz Luciano. Foto: Felipe Rosa.
“Eu usava o álcool para amenizar a solidão”, diz Luciano. Foto: Felipe Rosa.

Solidão

Luciano morava no interior do Paraná. Com 13 anos começou a beber e aos 15 anos consumia muita bebida. Aos 16 anos veio para a capital trabalhar. Estudou, formou-se em duas faculdades (Letras – Português / Inglês e Administração) e conseguiu ótimos empregos. De vendedor de uma loja de móveis e eletroeletrônicos, rapidamente passou a gerente e em seguida a gestor de várias lojas. Ele precisava viajar muito para atender a rede, passou por 42 cidades, ficava mais tempo em hotéis do que em casa, sozinho, sem amigos. ‘Eu usava o álcool para amenizar a solidão‘, diz ele.

O consumo foi aumentando. Luciano passava madrugadas bebendo e não tinha condições de trabalhar de manhã. Havia dias que chegava a hora de estar na empresa e ele sequer havia parado de beber. Assim, perdeu dois empregos. Passou por um tratamento de sete meses na Cravi e ficou um ano e meio sóbrio. Mas há quatro meses teve uma recaída. Mas desta vez, o próprio Luciano percebeu que estava perto do fundo do poço e pediu demissão para se tratar de novo.

É genética? É psicológico? É o meio social?

Ely Lemos explica o trabalho no Cravi. Foto: Felipe Rosa.
Ely Lemos explica o trabalho no Cravi. Foto: Felipe Rosa.

Terapeutas que atuam na Casa de Recuperação Água da Vida (Cravi), em Almirante Tamandaré, alertam: a maioria dos viciados possuem uma predisposição genética ao vício. Muitas vezes a pessoa é de boa família, tem uma ótima orientação, tem boa estrutura psicológica, e ninguém sabe explicar porquê caiu no vício. Mas o fator biológico, explica Ely Lemos, assistente social da Cravi, não é o único. O meio social, a saúde psicológica e a própria sociedade capitalista – que nos incentiva o ter as coisas, a buscar o prazer imediato – empurram as pessoas ao consumo das drogas.

Luciano Marques, por exemplo, possui cinco alcóolatras na família. Maria Inês Gonçalves, 68 anos, que é ajudante geral da Cravi, também chegou lá para se tratar junto com o irmão, ambos alcóolatras. Há oito anos estão curados e hoje são funcionários da Cravi.

Ely explica que não é possível saber com exatidão quantas pessoas se recuperam totalmente. Existe uma estatística de que, das pessoas que vão para as comunidades terapêuticas, apenas 40% delas concluem o tratamento. E destas, acredita-se que não chega a 2% a quantidade de recuperados. ‘Concluir o tratamento é uma coisa. Recuperar-se é outra. E só é possível saber se a pessoa se recuperou mesmo depois de dois ou três anos após o tratamento. Mas a gente acaba perdendo o contato. Não sabe o que aconteceu com elas‘, lamenta Ely, mostrando que as recaídas são muito comuns nesse caminho. Apesar disto, pessoas que passam por tratamento possuem condições de, sozinhas, enxergar o erro e buscar ajuda de volta.16 mil pessoas já passaram por tratamento na Cravi, em seus 20 anos de existência. Conforme a estatística, pelo menos 300 delas devem levar uma vida normal hoje em dia, sem drogas. Mesmo o baixo índice não desanima os funcionários da Cravi. ‘Pelo contrário. Nos estimula a continuar fazendo um trabalho cada vez melhor‘, diz Ely.

Como buscar ajuda?

 

Muitas comunidades terapêuticas não aceitam diretamente o acolhimento de viciados. Na Casa de Recuperação Água da Vida (Cravi), por exemplo, é preciso que os usuários venham encaminhados de algum tipo de equipamento social, como os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), o Ambulatório de Rua, hospitais, unidades de saúde, entre outros meios. E viciados que estão gravemente comprometidos pela droga não podem seguir diretamente para as comunidades. Obrigatoriamente precisam passar primeiro por uma desintoxicação em hospital psiquiátrico, pois muitas comunidades só aceitam acolhidos com comprometimentos leves a moderados.

Isto acontece porque, segundo Ely Lemos, assistente social da Cravi, as comunidades se esforçam em tratar o comportamento dos acolhidos, e não o estado de saúde. Pois é a mudança do estilo de vida que vai levar à recuperação.

Estágios

Quando os acolhidos chegam na Cravi (sejam homens ou mulheres, adultos ou adolescentes), passam por oito dias de acolhimento, para habituarem-se ao local. Depois, seguem num tratamento de nove meses, dividido em três estágios. Usam crachás para identificar em qual estágio estão.

O primeiro, vermelho, de três meses, é a fase da adaptação, aceitação de que é um viciado, da orientação e integração ao tratamento. O segundo estágio, verde, de quatro meses, eles praticam a responsabilidade, responsabilização, senso de utilidade e desenvolvimento pessoal. No terceiro estágio, azul, de dois meses, os acolhidos exercem cidadania, liderança, multiplicação do que aprenderam e reinserção social (cursos de capacitação, encaminhamento a empregos, etc.). Muitos se desenvolvem de tal forma nos estágios que viram monitores, presidentes de conselhos dentro da casa.

O tratamento com adolescentes é mais curto, dura apenas três meses e trabalha-se mais orientação e consciência crítica, visto que ainda não tiveram grandes perdas na vida por causa das drogas e tudo não passa de uma ‘aventura‘.

Força interna

Os técnicos da Cravi mostram que apenas 10% dos acolhidos na comunidade terapêutica chegam através de motivação interna, ou seja, porque sozinhos perceberam que precisavam de ajuda. O restante chega até a Cravi por motivações externas, ou seja, porque os familiares o levaram, porque foram encaminhados por algum setor de assistência social, etc. Apesar de ‘empurrados‘, só ficam porque aceitam de alguma forma se tratar.

‘Fazemos os acolhidos preencherem um questionário quando chegam, justamente para medirmos se foi uma motivação interna ou externa. A maioria é externa. Mas depois de alguns dias de acolhida repetimos o questionário e a percepção deles já é outra. Começam a aceitar o vício e perceber que é importante estarem ali‘, mostra a assistente social.

Lucas
Lucas é o psicólogo da Cravi. Foto: Felipe Rosa.

Caindo pelos cantos

E existem casos que não são fáceis de convencer o acolhido. Lucas Mendonça Kafka, psicólogo da Cravi, conta o caso de um homem que chegou completamente bêbado ao local para se internar, com uma requisição ‘antiga‘. Ou seja, depois de receber a recomendação de internamento, ainda passou duas semanas mergulhado no vício antes de procurar a Cravi.

Lucas passou uma hora tentando conversar com o homem, tentando mostrar que estava num ambiente seguro. Acabaram conseguindo colocar o homem para dormir. No ia seguinte, ele não lembrava absolutamente nada do que tinha conversado com Lucas e demorou a aceitar o tratamento. ‘O alcoolismo é sempre mais difícil de tratar. As pessoas estão em alta vulnerabilidade, pedem ajuda enquanto ainda estão sob efeito da droga‘, lamenta Lucas, que também tem lindas histórias de recuperação em seu currículo.

Sobre o autor

Giselle Ulbrich

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