Carros nacionais: consumidores de primeira e de segunda classe

Oscar Ivan Prux

Expressão muito conhecida diz que brasileiro é “apaixonado por carro”. Fato é que acompanhando o desenvolvimento, a frota nacional vem crescendo consideravelmente. Fontes do Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior estimam que o número de unidades vendidas deve dobrar até 2025 (estudo encomendado pelo Governo Federal prevê venda anual de 6,8 milhões de unidades incluindo motos, carros, caminhões e tratores).

Para 2010, a expectativa da Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave) é que sejam comercializados em torno de 3,4 milhões de unidades. Esse contexto, somado a falta de
infra-estrutura adequada (condições das vias de trânsito e tráfego) e a carência de uma educação para o trânsito tem provocado muitos acidentes que ceifam vidas e produzem prejuízos de toda ordem (segundo o IPEA, entre 2004 e 2005, o Brasil gastou em torno de 22 bilhões de reais nos custos decorrentes de acidentes em rodovias). E nesse ponto entra em cena a importância da questão da segurança dos veículos.

Antecipando a análise de aspectos técnicos dessa problemática, convém salientar dois pontos que chamam a atenção no contexto brasileiro: a) por deficiência quanto a educação e racionalidade para esse tipo de consumo, grande número de brasileiros quando escolhem o carro que vão comprar, ao terem de optar entre um item de segurança (como air bags, freio abs com ebd, etc.) e acessórios dispensáveis (equipamento de som, elementos de mero conforto como banco de couro ou adornos estéticos que apenas enfeitam a carroceria), lamentavelmente preferem gastar com estes últimos; b) sempre se soube que as empresas montadoras de veículos migram de um país para outro conforme sua conveniência empresarial, mas não difere a prática empresarial para a realidade da América do Sul. Objetivamente: é tradição
que os veículos exportados do Brasil (ou de seus vizinhos) para Europa ou América do Norte sejam de qualidade superior aos mesmos modelos fabricados para o mercado interno (principalmente, o brasileiro) e
isso mesmo quando os preços sejam equivalentes.

Essa concepção de haver consumidores de “primeiro mundo” e de “terceiro mundo” (numa divisão que era de se esperar estivesse desaparecida desde a queda do muro de Berlim), não se justifica, principalmente considerando-se que, junto com Rússia, China e Índia, o Brasil hoje compõe o grupo de países emergentes com maior destaque no mundo (BRIC). É fundamental, então, que: a) os consumidores brasileiros se eduquem e disciplinem para esse tipo de consumo, não esperando apenas que surjam normas para protegê-los (como a que veio tornar obrigatório, a partir de 2014, que todos os veículos nacionais venham equipados com air bags), mas façam sua parte abandonando a preferência por futilidades e dando valorizando na escolha os itens de segurança; b) paralelamente, é de se exigir mais qualidade dos veículos comercializados no mercado nacional e regional.

Não existem motivos válidos para essa disparidade deles em relação aos que são exportados para países desenvolvidos. E, nesse sentido, muito dignas de elogios são as iniciativas como a criação do Programa de Avaliação de Carros Novos para a América Latina (Latin NCAP), similar ao que já existe nos EUA, Europa, Japão, etc.

Associações dedicadas à proteção dos direitos dos consumidores lutam para que os carros aqui comercializados sejam mais seguros, ressaltando-se nesse mister as ações da Proteste que recentemente participou de um teste comparativo de colisão (vide com destaque, reportagem na Revista ProTeste n.º 97, ano IX, nov/10, onde se pode obter informações mais detalhadas). No referido crash test (batida a 64km/h, equivalendo a colisão parcial de dois veículos a 55km/h) ficou demonstrado que os veículos chineses (da Geely, que está chegando ao mercado brasileiro) apresentaram os piores resultados (numa escala de segurança que vai até cinco estrelas ficaram com zero), mas também que na avaliação de veículos muito comuns em nosso país (e no Mercosul), como VW Gol, Fiat Palio e Peugeot 207, o risco representado pela carência de segurança é bastante superior ao constatado nos mesmos modelos comercializados na Europa.

Observada a questão da qualidade do consumo, vê-se que uma das anomalias da desigualdade social é que o poder aquisitivo do consumidor pode ser determinante para a qualidade de vida dele e até para sua continuidade (em caso de colisão, aquele que está em veículo de alto padrão tem maiores chances de sobrevivência do que quem está em veículo popular). Todavia, independente desse fator, é de se ressaltar que os fornecedores, no caso as montadoras de veículos, têm dever legal de que os produtos que colocam no mercado apresentem qualidade-segurança e qualidade-adequação, bem como, de não praticar qualquer tipo de discriminação dos consumidores. Então, ao menos, é de se exigir que modelos do mesmo tipo sejam iguais em segurança, independente do continente onde estejam sendo comercializados, o que não está acontecendo como ficou demonstrado no teste de colisão. Ou seja, interesses comerciais (busca pelo maior lucro) não podem justificar a baixa qualidade da segurança de veículos não só no Brasil, mas em toda América do Sul (veja-se que no verão, é intenso nas estradas brasileiras, o tráfego de veículos vindo de países vizinhos), colocando em risco a vida de tantas pessoas. Assim, standards mínimos de qualidade devem ser impostos pela lei, os consumidores devem fazer sua parte se informando e dando preferência aos veículos mais seguros e as montadoras precisam ser instadas e até coagidas por medidas  legais, fiscalizações e punições para que cumpram esse seu dever de qualidade. A proteção da vida vale tudo isso.

Oscar Ivan Prux é advogado, economista, professor, especialista em teoria econômica, mestre e doutor em direito. Coordenador do curso de direito da Unopar. Diretor do Brasilcon para o Paraná.