Tentativa de furto e insignificância: há limites de valor?

 

 

              O caso a seguir discutido conta com uma inovação quanto ao princípio da insignificância. Confira-se:

  

“CRIMINAL. RECURSO ESPECIAL. FURTO. TENTATIVA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. PEQUENO VALOR DA COISA FURTADA.  IRRELEVÂNCIA PENAL. RECURSO PROVIDO.

I. A aplicação do princípio da insignificância requer o exame das circunstâncias do fato e daquelas concernentes à pessoa do agente, sob pena de restar estimulada a prática reiterada de furtos de pequeno valor.

II. A verificação da lesividade mínima da conduta, apta a torná-la atípica, deve levar em consideração a importância do objeto material subtraído, a condição econômica do sujeito passivo, assim como as circunstâncias e o resultado do crime, a fim de se determinar, subjetivamente, se houve ou não relevante lesão ao bem jurídico tutelado.

III. Hipótese em que o bem subtraído possui importância reduzida, devendo ser ressaltada a condição econômica do sujeito passivo, pessoa jurídica, que recuperou o bem furtado, inexistindo, portanto, percussão social ou econômica.

IV. Não obstante o valor da res furtiva não ser parâmetro único à aplicação do princípio da insignificância, as circunstâncias e o resultado do crime em questão demonstram a ausência de relevância penal da conduta, razão pela qual deve se considerar a hipótese de delito de bagatela.

V. Orientação da Quinta Turma desta Corte que fixou patamar para a aferição da insignificância do delito, que pode levar a conclusões iníquas, porque dissociadas de todo um contexto fático.

VI. Se o reconhecimento da irrelevância penal observa os critérios de índole subjetiva, a fixação de um valor máximo para a incidência do princípio da bagatela se apresenta, no mínimo, contraditória.

VII. Ausência de razoabilidade na fixação de valor para a averiguação da inexpressividade da conduta e ausência de lesividade penal, dissociado de outras variáveis ligadas às circunstâncias fáticas.

VIII. Recurso provido, nos termos do voto do Relator.”

 

(STJ – REsp 1218765/MG – 5ª T. – Rel. Min. Gilson Dipp – DJe 14.9.11. Destacamos)

 

Do acórdão, extraem-se os seguintes fundamentos:

 

RELATÓRIO

 

EXMO. SR. MINISTRO GILSON DIPP (Relator):

 

Trata-se de recurso especial interposto por MARCELO CARDOSO LEÃO, com fulcro nas alíneas ‘a’ e ‘c’ do permissivo constitucional, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, que negou provimento ao recurso da defesa, nos termos da seguinte ementa (fl. 153 e-STJ):

APELAÇÃO CRIMINAL. FURTO A SUPERMERCADO. AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS. VIGILANTE ACOMPANHANDO A AÇÃO DO RECORRENTE. CRIME IMPOSSÍVEL. DESCABIMENTO. CONDENAÇÃO MANTIDA. FURTIO PRIVILEGIADO. REQUISITOS PREENCHIDOS. REDUÇÃO DA PENA. SANÇÃO RESTRITIVA DE DIREITOS. ALTERAÇÃO INVIÁVEL. CUSTAS. ISENÇÃO. LEI ESTADUAL N.º 14.939⁄03. – A simples presença de dispositivos de segurança no supermercado não impede a subtração de produtos, mesmo porque o agente pode se utilizar de mecanismos para desviar a atenção dos vigilantes ou, ainda, passar despercebido, de modo que a tese do crime impossível não pode ser acolhida, revelando-se inviável a absolvição. – Diante do caso concreto, tratando-se de réu tecnicamente primário, a tentativa de subtração de duas garrafas de bebida alcoólica pode ser enquadrada na figura típica de furto privilegiado, ensejando a redução da pena, nos moldes estabelecidos no artigo 155, § 2.º, do Código Penal. – Na dicção do art. 46 do CPB, a prestação de serviços à comunidade só é aplicável às condenações superiores a 06 (seis) meses de privação de liberdade. – De acordo com o artigo 10, II, da Lei Estadual n.º 14.939⁄03, são isentos do pagamento de custas os que provarem insuficiência de recursos e os beneficiários da assistência judiciária.

Consta dos autos que o recorrente foi condenado à pena de 04 (quatro) meses de reclusão, em regime aberto, e 03 (três) dias-multa, como incurso nas sanções do art. 155, caput, c⁄c o art. 14, II ambos do Código Penal. A pena privativa de liberdade foi substituída por uma restritiva de direitos.

Em sede de apelação, o recorrente pugnou pela absolvição, ou, alternativamente, pelo reconhecimento do furto privilegiado, com a diminuição da pena e sua substituição por prestação de serviços à comunidade. O recurso foi parcialmente provido para, reconhecendo-se a figura do privilégio, determinar a redução da pena para 01(um) mês e 10 (dez) dias de reclusão, em regime aberto, mantida a substituição da pena privativa de liberdade por uma restritiva de direitos.

(…)

No presente recurso especial, aponta o recorrente ofensa aos artigos 1º e 155 do Código Penal e divergência jurisprudencial com julgado desta Corte. Argumenta no sentido de que a conduta objeto da denúncia não possui lesividade, uma vez que o objeto do furto foi avaliado em R$ 108,00 (cento e oito reais), devendo ser considerada a capacidade econômica da vítima, que é pessoa jurídica (Supermercado). Pugna pela aplicação do princípio da insignificância.

Foram apresentadas contrarrazões (fls. 220⁄224 e-STJ).

Admitido o recurso (fls. 226⁄227 e-STJ), a Subprocuradoria Geral da República opinou pelo seu desprovimento (fls. 239⁄243 e-STJ).

É o relatório.

 

VOTO

 EXMO. SR. MINISTRO GILSON DIPP (Relator):

 

(…)

A aplicação do princípio da insignificância requer o exame das circunstâncias do fato e daquelas concernentes à pessoa do agente, sob pena de restar estimulada a prática reiterada de furtos de pequeno valor.

A verificação da lesividade mínima da conduta, apta a torná-la atípica, deve levar em consideração a importância do objeto material subtraído, a condição econômica do sujeito passivo, assim como as circunstâncias e o resultado do crime, a fim de se determinar, subjetivamente, se houve ou não relevante lesão ao bem jurídico tutelado.

Assim considerou o acórdão recorrido: ‘Desde já, não vejo como tachar de ‘insignificante’ a lesão provocada pelo acusado, uma vez que a res furtiva foi avaliada em R$ 108 (cento e oito reais), quantia que embora não seja vultosa, não chega a ser ‘inexpressiva’ aponto de equiparar a situação econômica a um ‘não-crime’, sobretudo diante da atual realidade sócio-econômica do país.‘ 

Verifica-se que o bem subtraído possui importância reduzida, devendo ser ressaltada a condição econômica do sujeito passivo, pessoa jurídica, que recuperou o bem furtado, inexistindo, portanto, repercussão social ou econômica.

Além do valor da res furtiva não ser parâmetro único à aplicação do princípio da insignificância, as circunstâncias e o resultado do crime em questão demonstram a ausência de relevância penal da conduta, razão pela qual deve se considerar a hipótese de delito de bagatela.

(…)

Em que pese a orientação da Quinta Turma desta Corte que fixou patamar para a aferição da insignificância do delito, isto é, o valor de R$ 100,00 (cem reais), entendo que tal critério, de índole puramente objetiva, pode levar a conclusões iníquas, porque dissociadas de todo um contexto fático. Isto porque, se o reconhecimento da irrelevância penal observa os critérios já mencionados (a importância do objeto material subtraído, a condição econômica do sujeito passivo, e as circunstâncias e o resultado do crime), todos de caráter subjetivo, a fixação de um valor máximo para a incidência do princípio da bagatela se apresenta, no mínimo, contraditória. Deve ser considerado, com efeito, que o valor de R$ 100,00 (cem reais), em se tratando de realidade brasileira, de grandes disparates sociais, pode ou não ser tido por inexpressivo, se considerados outros fatores. Apenas como uma forma de perspectiva, tome-se como exemplo o Programa Bolsa Família, criado pela Lei 10.836⁄2004, que se consubstancia na transferência de valores às famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza, isto é, com renda per capita de até R$ 140,00 (cento e quarenta reais) mensais. Tal benefício, variável, tem como valor máximo uma soma que não ultrapassa R$ 200,00 (duzentos reais). Por outro lado, relembremos que o salário mínimo vigente no país é de R$ 545,00 (quinhentos e quarenta e cinco reais). Dentro dessa realidade – em que o que é ínfimo para uns não o é para outros – não parece razoável a fixação simples de um valor, R$ 100,00 (cem reais), para a averiguação da inexpressividade da conduta e ausência de lesividade penal, dissociado de outras variáveis ligadas às circunstâncias fáticas. Por essa razão, e considerando todos os aspectos subjetivos ligados ao caso concreto é que entendo por afastar a regra do patamar máximo jurisprudencialmente firmado, para entender pela ausência de lesividade penal no presente caso, em que, repito, o bem avaliado em R$ 108,00 (cento e oito reais), subtraído de pessoa jurídica, foi devolvido à vítima.

(…)

Dessa forma, deve ser reconhecida a incidência do princípio da insignificância no presente caso, com a absolvição do réu. Ante o exposto, dou provimento ao recurso, nos termos da fundamentação acima.

É como voto.

 

VOTO

NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO

 

1.Senhor Presidente, tenho observado mais de uma vez, embora inutilmente, que a absolvição do réu por falta de provas ou a não apreciação de alegação de sua inocência em face da prescrição da execução da pena são altamente lesivas à reputação da pessoa, à sua boa fama e ao seu bom nome.

2.Permito-me lembrar, Presidente um julgamento da Sexta Turma desta Corte Superior, do qual a Senhora Ministra Laurita Vaz também participou: tratava-se de um Procurador de Justiça que fora condenado, em São Paulo, por crime de natureza funcional e interpôs Recurso Especial, alegando a atipicidade da sua conduta. Ele havia sido condenado e havia realmente ocorrido a prescrição da execução da sanção.

3.Naquele julgamento oportunizou-se o debate sobre o interesse processual do condenado em recorrer de decisão condenatória, cuja execução não se poderia realizar em razão de prescrição; a Sexta Turma, contra o meu voto e o voto da Senhora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, entendeu de não apreciar as razões recursais do Procurador de Justiça, em decorrência da prescrição, ou seja, ele ficou com a condenação em sua biografia, como uma mancha na sua história pessoal, para ser acerbamente suportada e lamentada pelo restante de sua vida.

4.Penso que em face da garantia do bom nome da pessoa, da sua boa fama e da sua reputação, que é hoje um preceito constitucional, não prevalece mais aquela orientação, antiga, a meu ver, de que, ocorrida a prescrição, não se examinam as razões recursais; peço vênia para reiterar que tal situação não pode ser abonada pela jurisdição penal. 

5.E o sujeito que é condenado, como neste presente caso, em situação de crime de bagatela, que a orientação desta Turma é no sentido de ser atípica?

6.Acompanho integralmente o voto do Senhor Ministro Gilson Dipp e pondero a V. Exa. submeter à douta Turma a sugestão de se abolir a tarifa da bagatela, de cem reais, e passar-se a observar a conduta no caso concreto sempre. Por exemplo: um bem de valor maior do que cem reais pode ser bagatela e de valor menor do que cem reais pode não ser.

7.Concordo inteiramente com a observação do Senhor Ministro Gilson Dipp com relação a essa tabela, que nós estabelecemos buscando um critério objetivo; não foi algo raciocinado em termos científicos ou teóricos. Foi mais um pragmatismo para se dar alguma segurança aos julgadores de graus inferiores; entendo que se alguém foi condenado por crime de bagatela, tem o direito subjetivo de ver examinadas as suas razões recursais, em que postula a sua absolvição por atipicidade da conduta, apesar de não mais se cogitar da execução da pena.

8.Contudo, acolho inteiramente a ponderação do Senhor Ministro Gilson Dipp, ou seja, realmente tarifar em cem reais o conceito de bagatela penal é algo que não faz a Justiça penal engrandecida, a meu ver, mas sim a desfavorece.

9.Dou provimento ao recurso especial.” (destacamos)

 

N o t a s

 

            O tema do princípio da insignificância é sempre atual, por ser matéria de política criminal: não há limites claramente definidos ou estáveis. A recomendação da literatura e da jurisprudência é de que em cada caso seja avaliada, por investigação de suas peculiaridades fáticas e jurídicas, a possibilidade ou não de sua incidência.

            O caso em questão é mais uma prova de que não se podem estabelecer regras rígidas nesse âmbito. O acusado tentou furtar duas garrafas de bebida alcoólica avaliadas, conjuntamente, em R$ 108,00 (cento e oito reais). A vítima é um Supermercado, para quem dificilmente o prejuízo implicaria dificuldades financeiras. A conduta delitiva foi inibida pelo eficiente sistema de segurança do estabelecimento, o que significa que não houve dano algum, material ou moral. Resta saber se o valor dos bens autorizaria taxá-lo de penalmente irrelevante.

            Foi nesse ponto em que a aplicação do princípio evoluiu: a Corte revisou a orientação até então vigente – que fixava em R$ 100,00 (cem reais) o limite -, para formalizar o que já era sabido: “um bem de valor maior do que cem reais pode ser bagatela e de valor menor do que cem reais pode não ser“, como explicou o Min. Napoleão Nunes Maia Filho. Isso porque qualquer padronização estará em completa dissintonia com a natureza mista do princípio da insignificância: ele não compreende apenas circunstâncias objetivas (como o valor em questão ou a extensão do dano), mas, também – e especialmente – circunstâncias subjetivas, como a intenção do autor, seus antecedentes, seus motivos para o ato, o conhecimento da ilicitude etc. Somente com a admissão explícita da alta complexidade dessa tarefa é que se poderá, no futuro, realizá-la de forma justa, ou seja, individualizada.

 

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