Centenário do criminalista Mário Jorge

“Se não quiser ser esquecido logo depois de morto, escreva alguma coisa que mereça ser lida ou faça alguma coisa que mereça que escrevam a respeito.” (Benjamim Franklin)

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O advogado Mário Jorge nasceu em São Paulo em 11 de janeiro de 1917, fixando-se com seus pais e irmãos em Ponta Grossa onde cursou o primário e depois o Ginásio Regente Feijó.

Dois fatos da juventude marcaram sua vida e comportamento profissional. O primeiro, com seus 05 ou 06 anos de idade quando assistiu seu pai, pequeno comerciante, chorando porque um homem grotesco, a mando judicial, retirava todas as mercadorias da prateleira.

Implorava que lhe permitissem fechar as portas, pois estava com vergonha dos vizinhos. Dizia que sempre cumprira suas obrigações, mas era época de ditadura e enfrentava dificuldades. Mário Jorge, assustado, teria apanhado um metro de medir tecidos com ele batendo no advogado. Antes disso, a mãe passava a mão na sua cabeça e dizia: “você vai ser um grande advogado”.

Ao assistir o episódio questionava: “advogado? É isso que minha mãe quer que eu seja? Não quero ser advogado! Não quero”. O segundo episódio, quando Mário Jorge tinha seus 20 anos de idade e ao passar por um bar, em Ponta Grossa, assistiu dois homens discutindo e um deles disse: “Por que não me expulsa outra vez do Paraná?”, quando um policial interveio querendo prender aquele que estava armado e o outro se limitou a dizer: “Não prenda, eu resolvo isso de outra forma.” Era novembro de 1937 e persistia a ditadura. Os dois eram: o interventor federal do Estado, Manoel Ribas e Miguel Quadros um dos mais conceituados advogados do Paraná e tio do ex-presidente da República Jânio Quadros.

Mais tarde soube que um daqueles rixentos tinha sido assassinado: o advogado. O autor do crime teria sido visto quando atirou pela fresta existente entre o muro e a casa da vítima. Segundo testemunhas, aparentava ser jovem não mais que 30 anos. A polícia teria extorquido a confissão do “seresteiro” João Ferreira Guimarães Barbosa, mais conhecido como Barbosa Paraná, com 60 anos de idade que mal a ninguém fazia. Preso e submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri de Ponta Grossa, os advogados temerosos, recusaram a defesa.

O advogado Edwi Villacqua, curioso, olhou porta adentro do plenário e o juiz Joaquim Meneleu de Almeida Torres determinou que ocupasse a tribuna e fizesse a defesa. Improvisou dizendo: “Todos sabem que este homem é inocente, quem tiver coragem de absolver, que absolva.” Absolvido por unanimidade de votos. A acusação interpôs recurso ao então Tribunal de Apelação. A decisão do júri foi reformada e o réu condenado à pena de 21 anos de reclusão. Consumava-se o erro judiciário.

O fato ficou conhecido como o “Caso Barbosa Paraná”. Todos sabiam da inocência do condenado. Por curiosidade, Mário Jorge, que era auxiliar de mecânico da Oficina Internacional de Ponta Grossa, resolveu visitá-lo na penitenciária, ouvindo suas queixas, a truculência de que fora vítima e as juras de inocência do sentenciado. Prometeu que iria procurar um advogado. Ninguém se interessou pelo caso. Ao voltar ao presídio ouviu do condenado já idoso: “Não se preocupe moço, já me conformei em morrer aqui.”

Vinha à mente a lembrança da expressão da mãe e a ojeriza que criara aos profissionais dessa área. Entretanto, jurou que iria cursar Direito e ele mesmo provaria a inocência de Barbosa Paraná. E assim o fez. Ingressou na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná e ainda acadêmico passou a correr atrás das provas. Nessa época passou a prestar serviços ao conceituado jornal Diário dos Campos, sob a direção de José Hoffmann.

Inscreveu-se na OAB/PR em maio de 1948 como “Solicitador/Acadêmico” sob nº 191. Em fevereiro de 1950 quando colou Grau de Bacharel em Direito fez inscrição provisória nº 152 e só mais tarde teve a sua inscrição definitiva sob nº 1194.

Ingressou com Ação de Revisão Criminal. Levada a julgamento pediu a palavra o desembargador Antônio Leopoldo dos Santos, revisor do processo, que assim se expressou em meio à viva emoção de toda assistência:

“Sr. Presidente. Em 1938, quando o processo Barbosa Paraná subiu à decisão deste Tribunal, funcionavam nesta casa os desembargadores Clotário Portugal, Leonel Pessoa, Antônio de Paula e eu. O único sobrevivente neste momento é o desembargador que vos fala. Sorteado que tinha sido para relator do processo vindo de Ponta Grossa, pedi a condenação de Barbosa Paraná, diante das provas que vieram com o recurso de apelação. Assim, não me pejo em afirmar que fui eu o autor da condenação desse homem, e afirmo que não estou arrependido do meu julgamento naquela época. Hoje, porém, rendo graças ao Criador, por estar vivo e por se me apresentar essa grande oportunidade de reparar o erro que cometi. Sim, erro que cometi, porque agora estou tendo conhecimento da farsa cometida pela autoridade policial e pelos responsáveis no processo que veio para este Tribunal. Nessas condições sinto-me muito bem em dar o meu voto absolvendo João Ferreira Guimarães Barbosa, também conhecido por Barbosa Paraná, de toda e qualquer culpa, reconhecendo a sua inocência do crime que lhe foi imputado.”

Todos os demais desembargadores acompanharam o voto do relator. Foi absolvido. Era 1º de Julho de 1950. O condenado estava com 72 anos de idade.

Com isso Mário Jorge e o colega Alir Ratacheski ingressaram com ação de indenização contra o Estado do Paraná pelo erro judiciário. Ação procedente. Anos depois Mário Jorge recebeu uma carta de Noel Nascimento, promotor de justiça em Guarapuava, seu colega de turma que nas viagens de trem rumo a Curitiba durante o curso de direito, o chamava de visionário correndo atrás de provas de inocência. Na correspondência narrava que determinado cidadão, no leito de morte, não queira partir sem antes fazer uma confissão perante as autoridades da comarca. Tinha sido o autor do delito, por questões de terras.

Crime prescrito – caso do filho do carteiro

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E Mário Jorge pegou gosto pela advocacia enaltecendo e dignificando a nobre profissão. Onde se vislumbrava a possibilidade de uma injustiça dedicava o máximo de esforço à busca de provas de inocência.

Em 1964 outro erro judiciário ocorreu na cidade de Ponta Grossa, levando três jovens amigos, Januário, Luiz e Francisco a condenação de pena de 26, 22 e 28 anos de reclusão por delito de latrocínio, que não cometeram. A vítima era motorista de taxi e no interior do carro teria sido encontrado um bilhete cuja grafia o Instituto de Criminalística do Paraná atribuiu a um dos acusados. O pai de um deles era carteiro e escreveu ao programa radiofônico criado e dirigido por Mário Jorge Culpado ou Inocente? pedindo ajuda. O advogado angariou provas, submeteu à nova perícia o bilhete através do conceituado perito em documentos José Del Picchia Filho, de São Paulo, com a colaboração do extraordinário perito americano James Clark Sellers. O primeiro perito concluiu que a grafia não pertencia a nenhum dos acusados.

O outro foi além afirmando conclusivamente que a letra era de uma das testemunhas de acusação. A revisional foi indeferida “porque a perícia não havia sido feita por perito oficial do Paraná”. Mário Jorge recorreu ao Supremo Tribunal Federal. O então procurador geral da República (mais tarde ministro do STF) Oswaldo Trigueiro, emitiu parecer concluindo:

“… Quanto ao mais, é matéria de prova, insuscetível de ser reexaminado no âmbito do extraordinário, o que é, realmente, uma pena, pois, a nosso ver, ela merecia ser reapreciada, visto que, em que pesem os fundamentos do V. Acórdão recorrido, o exaustivo e inteligente trabalho do ilustre advogado dos recorrentes gerou-nos a convicção de que, na espécie, ocorreu um gritante erro judiciário.”

O formalismo das Cortes falou mais alto que o brado de inocência dos condenados. O Advogado fizera a sua parte. Ainda assim, extraíra o máximo dos benefícios ofertados pela lei penal e sendo primários e sem antecedentes, foram colocados em liberdade condicional para o cumprimento do restante da pena.

O caso da professorinha

 

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Em 1969, na cidade de Papanduva/SC uma professora, M.N.S., foi acusada de bater as cabeças de dois alunos, matando um deles e ferindo gravemente a outro. A imprensa se encarregou de acirrar o clamor público e muitos queriam linchar a professora. Era jovem, pobre, que andava 6 quilômetros por dia a pé para lecionar, com isso auxiliando os pais na manutenção da casa e dos irmãos menores. Mário Jorge de passagem pela cidade resolveu examinar o processo e inteirar-se dos fatos. A professora havia sido sumariamente demitida.

Em poucos dias o defensor comprovou cientificamente através de autopsia que requereu, que os ferimentos apontados em raio X como sendo fraturas de crânio, nada mais eram do que câncer corroendo os ossos da cabeça do menino e formando estrias. Foi absolvida em tempo recorde. Como ato de desagravo o Governo do Estado de Santa Catarina através da Secretaria de Educação a reconduziu às atividades imediatamente. Recebeu do Estado bolsa de estudos logrando formar-se no Magistério, sendo ela oradora da turma e Mário Jorge, o Paraninfo.

O caso do quilo de carne

 

Uma senhora carente A. N. D. que vivia com os filhos menores embaixo da ponte do Rio Marrecas em Francisco Beltrão foi condenada a pena de 3 anos e 6 meses de reclusão por haver recebido um quilo de carne de porco que consumiu com os filhos e que teria sido furtado. Ao ser encaminhada à penitenciária feminina o fato ganhou manchete nacional pelo rigorismo da pena imposta. Em poucos dias Mário Jorge obteve do Tribunal de Alçada seu alvará de soltura. Em liberdade, mudou-se para o município de Mandirituba, obtendo auxílio para moradia, estudos para os filhos e emprego digno. Mais tarde, em homenagem, uma das escolas passou a chamar-se Escola Municipal Dr. Mário Jorge.

O caso do morro do Guabirotuba

Um “chapa” de caminhões L.C.L. foi acusado de haver assassinado em maio de 1977 uma professora universitária, no morro do Guabirotuba, em Curitiba. Foi condenado a 25 anos de reclusão. Mário Jorge, contratado pela família da vítima, acompanhou o andamento do processo e, ao final, o pai da jovem, convencido de que aquele não era o autor e a família queria os verdadeiros criminosos na cadeia, outorgou ao advogado procuração para que ingressasse com justificações judiciais, produzindo provas e fizesse a revisão do processo. Nessa revisão ficou comprovado que no momento do crime ocorrido em Curitiba o acusado se encontrava há mais de 60 quilômetros, na Serra da Graciosa, trabalhando.

Fato este testemunhado por mais de 50 pessoas, incluindo seu patrão e a cozinheira que anotava num caderno todas as refeições fornecidas aos trabalhadores. Lamentavelmente a revisional foi indeferida. Nem por isso Mário Jorge perdeu sua inabalável confiança na Justiça dos homens. O condenado, primário e sem antecedentes foi liberado com livramento condicional postulado pelo mesmo advogado e continuou levando vida honesta e bom chefe de família.

Inúmeros outros casos de reparação de injustiça poderiam ser citados. Marcou época na Advocacia Criminal. Criou o Instituto Brasileiro de Revisões Criminais com a finalidade de revisar gratuitamente os processos de réus inocentes, condenados sem assistência de defensor constituído. Não patrocinava causas que considerava injustas, mas ia aos extremos na defesa do fraco, com razão. Tido como defensor dos pobres.

Receonhecimento

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Foi considerado o maior homem do Júri do Brasil. Deixou em seus arquivos dezenas de diplomas de mérito profissional. Recebeu “Medalha de Ouro Flávio Cavalcante”, do famoso apresentador de TV que mandou cunhar 10 delas. A primeira foi entregue a Albert Sabin, médico e cientista que desenvolveu a vacina contra poliomielite; a segunda a Roberto Carlos, que permaneceu 24 horas no ar angariando fundos para crianças carentes; outra delas para Mário Jorge. Flávio faleceu anos depois sem ter conseguido entregar a totalidade delas, tal era o rigorismo para a escolha de seus homenageados.

Nasceu para a advocacia para reparar um erro judiciário. Voltou toda a sua vida em defesa dos desvalidos. Sua voz rouca e desgastada pelos debates orais – em nada menos de 1500 juris – ressoava como a tábua de salvação dos oprimidos. Nunca se calou diante da prepotência, do abuso de poder, do abuso de autoridade.

Na vigência do famigerado AI-5, generalizou-se no País o autoritarismo e a tirania que restringiam também a liberdade de ação de muitos profissionais do direito. Quando o chamado “pacote de abril” alterava uma vez mais o texto constitucional com o Congresso Nacional posto em recesso, os Advogados do Brasil, mais de 3.000 deles presentes, sob o comando de Raymundo Faoro da OAB e de Eduardo Rocha Virmond da Seccional do Paraná, reuniram-se, na VII CONFERÊNCIA NACIONAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, realizada em Curitiba, de 7 a 12 de maio de l978, que transcorreu em quadra política convulsionada, sob o tema “O ESTADO DE DIREITO”. Lá estavam e de tudo participando Mário Jorge e equipe. A carta redigida pelos Advogados é documento gravado nos ANAIS DA HISTÓRIA e muito repercutiu na retomada dos rumos do Brasil, assegurando a garantia dos direitos constitucionais, dentre eles, a liberdade de trabalho, de expressão e de imprensa, demostrando que os advogados são, por lei, os defensores das liberdades individuais e públicas.

Faleceu em 1º de junho de 1987, deixando viúva D. Manita, a filha Jussara, casada com Valter Souza Dias, ambos advogados e a neta Suzana.

Para o direito, uma lacuna que jamais será preenchida. Estava com ele no último instante o seu amigo Desembargador José Said Zanlute que em homenagem póstuma escreveu: “… Tinha partido o mais valente guerreiro da liberdade, o mais nobre e humanitário defensor da verdade deixando para trás os mais belos exemplos de amor aos inocentes e à Justiça.”

Dada a relevância dos serviços prestados à sociedade, seu nome foi dado a Ruas das cidades de Ponta Grossa, Curitiba e São José dos Pinhais.

Em comemoração ao Dia do Advogado a OAB/PR em 1989 prestou-lhe significativa homenagem. O então Conselheiro Walter Borges Carneiro propôs e foi aprovada à unanimidade de votos a afixação no Tribunal do Júri da Capital, de uma placa entalhada em bronze, onde se lê: “ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, SEÇÃO DO ESTADO DO PARANÁ. AO CRIMINALISTA MÁRIO JORGE, QUE FEZ DO JURI A RAZÃO DE SUA EXISTÊNCIA, A HOMENAGEM DA O.A.B. PARANÁ. CURITIBA, 11 DE AGOSTO DE 1.989.” A solenidade oficial contou com grande número de pessoas ligadas ao judiciário paranaense, sob o comando do então Presidente da OAB/PR Dr. José Cid Campelo e do seu vice Professor Fernando Vidal de Oliveira.

A morte só é o fim para quem tudo se acaba com ela; não o será para aqueles cujos feitos notáveis nunca morrerão.

Por Terezinha Elinei de Oliveira, OAB-PR. 6.455, advogada jubilada.

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